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Fausto Rodrigues de Lima
Promotor de Justiça do MPDFT

A ausência feminina na história não se explica apenas pelo fato de as mulheres terem sido alijadas do poder por milênios, mas também porque sua escrita foi feita por (e para) homens. Apesar disso, elas sempre estiveram no centro dos acontecimentos. Após 50 anos do golpe que varreu a liberdade no país, reflitamos sobre seu papel.

Em 19 de março de 1964, pouco antes da destituição de Jango, as mulheres foram protagonistas da célebre Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que reuniu parte da Igreja Católica e grupos conservadores para apoiar a intervenção militar. Organizada por esposas de empresários paulistas, a manifestação foi incentivada por políticos financiados pelos Estados Unidos, que buscavam controlar a América Latina por meio dos exércitos locais. O maior país latino era prioridade, pois serviria — e de fato serviu — de modelo para implementação de ditaduras nos demais.

Esclareça-se que a marcha não foi um movimento popular de mulheres. Sua “cúpula” estava aquém dos debates feministas que incendiavam os Estados Unidos. As chiques do movimento, embora tenham cooptado suas empregadas domésticas, visavam conter os trabalhadores que pediam melhorias.

À época, as tensões de classe eram alheias às de gênero e de raça, que compõem o tripé dos preconceitos sociais (Heleieth Saffioti), até porque, consideradas incapazes pelo Código Civil de 1916, todas as mulheres passavam longe da estrutura de poder. Nas Forças Armadas, eram vetadas em nome do mito de que a guerra está para o homem, assim como a gravidez para a mulher.

É fato que, dois anos antes da marcha, o Estatuto da Mulher casada, entre outras conquistas, permitiu à esposa trabalhar sem autorização do marido. Porém, beneficiou principalmente as mulheres brancas e da classe média e alta, pois as pobres e “de cor” já exerciam jornadas estafantes de trabalho nas fábricas, fazendas e lares abastados desde os primórdios da revolução industrial.

Alheio ao progresso, o regime militar reforçou a submissão da mulher. As políticas sociais ensaiadas para legitimar o (des)governo foram direcionadas à família institucionalizada pela figura do chefe, “única autoridade reconhecida e incontestada” (Mary Del Priore). Enquanto isso, agentes da ditadura se sentiam à vontade para violentar mulheres no cárcere.

Nesse período de terror, enquanto outros países discutiam a igualdade de gênero e de raça, os brasileiros lutavam apenas pelo direito de discutir — atraso sociológico que abriu feridas históricas em nossa formação. De fato, somente em 2013 conferiu-se às empregadas domésticas os mesmos direitos dos demais trabalhadores (Emenda Constitucional nº 72). E a grita foi geral. Argumentou-se até que a classe mais explorada, as mulheres negras, perderiam o emprego se ganhassem direitos.

Nesse contexto, não espanta que muitos(as) brasileiros(as) achem que a mulher merece ser estuprada se usar roupa curta, conforme pesquisa recente do Ipea. Outros(as), ainda influenciados(as) pela competente lavagem cerebral da ditadura (censura e propaganda ufanista), sentem sua falta em face das notícias de corrupção e politicagem “democráticas”. Preferem ser controlados(as) e censurados(as) por ditadores que não escolheram, sem perceber que as notícias de “malfeitos” só são possíveis numa democracia, pois a silenciosa corrupção ditatorial é garantida à bala.

Ora, nenhum governo é perfeito. Porém, só na democracia os meios de controle podem ser aperfeiçoados por instituições independentes, imprensa livre e população capaz de protestar e escolher periodicamente os que exercerão o poder. As grandes corrupções do regime militar, que enriqueceu poderosos da mídia, banqueiros e empreiteiros (construção da Transamazônica e outras obras desnecessárias), nunca foram investigadas. Se alguém do povo ousasse reclamar, entraria para as estatísticas dos torturados e desaparecidos, após ser rotulado de “comunista”, cujo conceito foi ampliado para abarcar qualquer pessoa contrária à repressão.

Reconheçamos que a luta feminina tem sido decisiva para o fortalecimento da democracia. Mirem-se no exemplo daquelas mulheres que protagonizaram a eleição presidencial de 2009: uma ex-presa política, que lutou contra os militares (Dilma Rousseff), e uma negra, nascida no seringal (Marina Silva). Essa inversão do “natural” causaria horror às elegantes organizadoras da Marcha de 1964.

Neste mês, a chefe das Forças Armadas proibiu os militares da ativa de comemorarem o golpe de 31 de março de 1964. Tamanho poder foi exercido sem uso de armas, prisões, ou torturas. Bastou a vontade soberana da população, que a elegeu primeira mulher a comandar o país. Os ditadores podem até se revirar no túmulo, mas o dia continua a raiar sem lhes pedir licença.

Correio Braziliense - 14/4/2014

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