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Sérgio Bruno Cabral Fernandes
Promotor de Justiça do MPDFT

“Caminhei no corredor procurando a poltrona 15C. As minhas vizinhas na 15A e na 15B eram uma bela mulher com a sua filha, deitada. Sentei e perguntei o nome da menininha cujo travesseiro a minha perna escorava. ‘Anny’, respondeu a mãe. ‘Essa é a minha paixão”, disse, com ternura fazendo cócegas na barriga da filha. ‘Olha que narizinho mais lindo!’ ‘Realmente, ela é uma graça’, comentei, encarando Anny.

E a conversa fluiu até São Paulo. ‘Anny nasceu com uma doença rara’, passou a me explicar a mãe, de forma natural. A síndrome CDKL5 causa convulsões diárias e afeta o sistema neurológico. Anny vinha evoluindo lentamente e chegou a andar. Mas, quando completou 3 anos, regrediu enormemente, perdendo o que havia conquistado. O mais dramático, porém, eram as convulsões diárias que chegavam sem avisar. Anny chegou a ter mais de 80 crises convulsivas numa semana. Os prognósticos médicos eram pessimistas. Nenhuma droga no Brasil atenuaria tais efeitos. Nos Estados Unidos, contudo, havia o CBD, remédio derivado da maconha.

Os pais de Anny, apostando todas as esperanças na droga ilegal, decidiram ‘traficar’ o remédio. Com o CBD, as crises convulsivas cessaram e Anny teve expressiva melhora na parte neurológica. O rosto perdido de Anny retomou a expressão de antes, sendo possível interpretar sentimentos de alegria, como um leve sorriso, ou de descontentamento, como um franzir de testa. Anny voltou a se alimentar e a olhar os pais quando chamavam o seu nome. Esses avanços contrariavam todos os prognósticos médicos recebidos até então. O aumento da qualidade de vida de Anny após o remédio era incontestável. A batalha e os riscos que eles corriam valiam muito a pena. Qual é a relação da aprovação do CBD no Brasil com o tema descriminalização da maconha? Nenhuma. A ‘viagem’ de Anny é outra.

Anny e sua família lutam por saúde, buscam qualidade de vida. Apenas isso. É preciso, portanto, separar os temas. O tratamento dado à Cannabis sativa, enquanto componente medicinal, deve ser diverso do dado ao uso recreativo da maconha. São enfoques diversos. No caso do CBD, discute-se o tratamento de pessoas doentes: tem eficácia? É seguro? O consumo social da maconha, por sua vez, é muito mais complexo e envolve outros aspectos, além de questões sanitárias.

Uma lei da Holanda que autoriza o consumo indistinto da maconha, certamente, não servirá para o Brasil. São realidades diferentes. Mas, ora, por que um remédio bem-sucedido em diversos países de primeiro mundo, como os EUA e o Canadá, não serviria para os pacientes brasileiros? A doença de Anny é idêntica à de um americano portador de CDKL5. Negar o acesso dos brasileiros a remédios como o CBD, tão somente pela presença do canabidiol em sua fórmula segue a mesma lógica absurda de proibir o uso da morfina em razão da sua relação com a heroína.

O preconceito é inimigo mortal da medicina. A inércia e a burocracia kafkiana também podem ser letais aos pacientes com doenças graves. O debate sobre o uso desses remédios é urgente e deve ser feito de forma equilibrada. Sem euforia ideológica, tampouco a letargia conservadora que costumam polarizar o debate.

A família Fischer estava indo a São Paulo para participar de um seminário sobre o uso medicinal da cannabis sativa. O avião já vai descer. Olho para o lado e as minhas vizinhas dormem. Senti vontade de dizer que admiro a determinação daquela família, mas não queria acordar Anny. O dia seguinte seria longo. Aproveito a oportunidade e faço-o agora: Katiele, Fischer, Anny e Julia, o primeiro passo para quebrar um tabu e jogar luz sobre ele é colocar o tema em debate, enfrentar as críticas e mostrar as incoerências. E isso vocês têm feito com muita coragem.

Correio Braziliense - 28/5/2014

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