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Fausto Rodrigues de Lima
Promotor de Justiça do MPDFT

Recentemente, noticiou-se a prática de dois crimes bárbaros. Em São Paulo, pai e madrasta teriam espancado e jogado criança pela janela de apartamento; em Goiânia, mãe "adotiva" teria torturado menina com alicates e ferro quente. Os fatos geraram atenção integral da imprensa, pronta atuação das autoridades e inflamada indignação da população, com direito a tentativas de linchamento e atos públicos com celebridades (incluindo Xuxa e Padre Marcelo Rossi).

Essa comoção espetacular, motivada pela condição econômica dos envolvidos, pode causar a falsa impressão de que tais fatos são raros e que a sociedade e o Estado brasileiro não aceitam a violência familiar.

Ledo engano. Crianças são espancadas diariamente no País, com a conivência de familiares, vizinhos e amigos. Pequenos são atendidos na rede de saúde após agressões covardes. Alguns não sobrevivem. Na maioria das vezes, profissionais de saúde e professores se omitem pelo temor de se envolver. Muitos aceitam as desculpas de que foi apenas um acidente doméstico, como uma queda no banheiro ou de bicicleta. Outros entendem que a autoridade dos pais não pode ser questionada, pois lhes seria inerente o direito de corrigir.

Quando ocorre uma denúncia, os fatos são enquadrados como crime de maus-tratos (excesso na correção), que não cabe prisão e nem processo. Os casos acabam encerrados sem qualquer providência.

Essa omissão social e estatal faz com que as primeiras agressões evoluam para atos incontroláveis. No caso de São Paulo, por exemplo, há notícias de que o pai seria agressivo com os filhos e que já teria ameaçado a avó materna da menina com um revólver. Em Goiânia, a mãe "adotiva" já teria escravizado e torturado outras crianças. Pagou apenas cestas básicas por crime de maus-tratos. Somente agora, porque a menina foi encontrada e filmada algemada, ela está sendo processada por crime de tortura. Se a denúncia tivesse chegado à delegacia de outra forma, o caso seria enquadrado apenas como crime de maus-tratos. No caso de São Paulo, caso a menina não tivesse sido atirada pela janela, a tortura anterior sofrida dentro do carro do casal também seria enquadrada apenas como maus-tratos. Isso se algum familiar denunciasse, fato raro em tais casos.

É patente que atos violentos podem atingir terrivelmente uma criança, causando sofrimentos incalculáveis e danos irreversíveis à sua personalidade. Tratados apenas como maus-tratos, são na verdade crimes de tortura, física e/ou psicológica, e assim deveriam ser enquadrados.

Em julgamentos exemplares, e a pedido da promotoria de justiça, o juiz Edilson Enedino das Chagas, do Distrito Federal, tem afastado a alegação de maus-tratos e aplicado a lei do crime de tortura, quando caracterizado o "intenso sofrimento". Em abril/2007, um acusado foi condenado porque aterrorizava seu filho, de 6 anos de idade, dizendo: "Olha aqui, essa faca é para matar a sua mãe quando ela estiver dormindo". No último dia 7/4/2008, o magistrado aceitou processar outro acusado que, armado de uma faca, acordava seus filhos à noite e gritava: "Quem quer morrer primeiro?". Num Estado que sequer reprime a tortura física, o magistrado avança e enfrenta a tortura psicológica.

É compreensível o drama de juízes e promotores quando se deparam com a violência infantil. É que as vítimas são completamente dependentes dos acusados e continuarão sob seu comando. Retirá-las da residência, mesmo provisoriamente, significa abandoná-las em algum abrigo público até a volta para casa, quando podem sofrer represálias.

Estudos demonstram, porém, que é possível agir eficazmente, sem vulnerar ainda mais as vítimas, usando-se, simultaneamente, três eixos de atuação: proteção, orientação e punição. As medidas emergenciais visam garantir a integridade das vítimas, a atuação multidisciplinar busca orientar (educar) os acusados e a punição pretende frisar que violência é crime, e não "direito de correção". Nas agressões iniciais e menos graves, pode-se substituir a prisão por um acompanhamento psicossocial, inclusive por meio de visitas periódicas de assistentes sociais às residências dos envolvidos. A Lei Maria da Penha (11.340, de 2006), promulgada para enfrentar a violência doméstica, prevê as três formas de atuação.

Se os familiares e o Estado não tivessem se omitido nas primeiras agressividades, é bem provável que as meninas vitimadas em Goiânia e São Paulo, e seus agressores, protagonizassem uma história diferente.

Jornal de Brasília

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