Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça
A solidariedade familiar é transindividual, mas ainda não é a “sociedade”, pois não há alteridade suficiente entre seus componentes. O direito se rende ao reconhecimento de que “as famílias são fundadas como abrigos e castelos sólidos num mundo inóspito e estranho, no qual se precisa ter parentesco” (H. Arendt) ao imputar aos pais a responsabilidade pelos atos ilícitos dos dependentes, e por prever a hipótese de demanda alimentar recíproca em caso de necessidade e possibilidade.
O bom pai ama o filho mais do que a si próprio, mas se isso não se aplicar a algum caso concreto, as obrigações legais permanecem intactas. Um casamento muito longe dos contos de fadas, sem amor, por conveniência apenas, ou por qualquer outro motivo menos nobre, é juridicamente válido e irradia todos os seus efeitos legais.
É justo impedir que uma criança ponha a mão no forno ou atravesse a rua correndo em pleno tráfego. Pode-se, deve-se doutrinar os infantes, preventiva e retrospectivamente, inclusive com castigos físicos moderados. É apropriado impor aos pequenos limites bem claros. Eles querem esses limites, porque precisam entender onde se situam no mundo, saber desde logo que suas experiências domésticas se coadunam sem contrastes chocantes com as do mundo lá fora: que a auto-imagem e a semelhança se articulam em certa harmonia. Sentimento de identidade e orgulho em relação aos semelhantes cujas posições acompanham o movimento para dentro e para fora da porta de entrada da casa, e irrigam o desenvolvimento da personalidade individual.
Sociologicamente, as famílias podem ou não se prestar como “modelos estáveis e seguros” que sirvam de “núcleo cristalizador na luta com seus próprios impulsos desconexos” (Norbert Elias). Em caso positivo, o sujeito tem até mesmo procuração tácita para chamar a atenção do filho do vizinho, ameaçando contar para o papai ou a mamãe, em uma intervenção que pressupõe reciprocidade e que costuma ser eficiente. Em caso negativo, a vizinhança não passa de uma idéia estendida da própria residência, pois um e outro são lugares que despertam o desejo único, que é de abandonar o mais rápido possível. De inferno em inferno, sobrevive-se da vontade intransitiva de fugir: um chute na porta ou a exibição do dedo médio testemunham as despedidas. O sujeito se torna um organismo, indefeso e reduzido a quaisquer fontes de realidade que lhe apareçam.
Na velhice, os filhos é que cuidam dos pais. Convém que aqueles peçam a estes que parem de fumar ou não exagerem na gordura, que não se esqueçam de tomar os remédios. Que invertam os papéis e assumam a vigilância da educação, com mão rigorosa. Albert Camus inicia o seu O Estrangeiro com o personagem principal confessando que não sabia se sua “maman” havia morrido naquele dia ou na véspera. Mersault não chorou no velório, foi à praia, namorou a namorada, continuou tocando a vida como se nada tivesse acontecido. Até matou um cara, “um árabe”. Não admira que terminasse seus dias condenado à morte, desejando que uma furiosa multidão gritasse sua cabeça. Não foram só os jurados que ficaram sabendo de sua bruta indiferença emocional.
Mas mesmo os bons pais precisam justificar sua autoridade. Os filhos nunca deixam de questionar, ou ao menos testar, a sabedoria dos mais velhos – que quantas vezes realmente não se mostra imperfeita –, de modo mais acentuado na época da adolescência, que é quando o jovem contesta regras, instituições e costumes, e acha que tem melhores argumentos do que os que lhe são sugeridos e impostos: “O jovem não precisa de razões para viver; só necessita de pretextos”, diz Ortega y Gasset.
É esse sentimento de autoridade sincera e dedicada que engendra o discurso de percepção da norma jurídica, qual uma “figura paterna”: tal como o pai ama o filho, sem impor condições, sem exigir nada em troca. Seu amor, “previamente correspondido” (Julián Marías), é sintetizado na parábola do filho pródigo. O amor de mãe é ainda mais puro; sabemos que, para as mães dos presidiários, todos os condenados são bandidos, menos os próprios rebentos. O do marido é mais exigente e menos delicado: as traições da esposa dificilmente são perdoadas.
Segue a parte final.
Jornal de Brasília