Inácio Neves Filho
Promotor de Justiça do MPDFT
Era sábado, 13 de dezembro de 2014, dia de Santa Luzia, santa protetora dos olhos. No mesmo dia, fato de extrema significância acontecia em Crixás quando, sob a batuta do compatrício Ursulino Tavares Leão, nascia a Academia Crixaense de Letras. O fato em si, embora de incomensurável relevância para a cidade, talvez não merecesse tamanho destaque, não fosse o grau de respeitabilidade do idealizador da obra. A engenhosidade do criador permitiu que a academia nascesse pujante, predestinada à realização de seu mister, de cunho predominantemente literário e linguístico.
A cerimônia oficial ocorreu no auditório da Câmara de Vereadores com a presença de vários escritores, poetas e literatos da cidade de Crixás. Usando da palavra em tom informal, o ilustre crixaense de 91 anos, sucintamente, discorreu sobre a importância da criação da academia e a estreita ligação que mantém com a sua terra natal, tendo compartilhado sua vasta experiência como escritor e se comprometido com a estruturação da nova entidade. Em clima de forte emoção, vários acadêmicos fizeram uso da palavra, enaltecendo a grandiosidade do evento e a importância da academia para o desenvolvimento sócio-cultural de Crixás. A tônica dos pronunciamentos centrou-se, ainda, em elogios e homenagens ao Dr. Ursulino Leão, com o reconhecimento de sua valorosa contribuição à literatura e à política do Estado de Goiás, bem como da sua dedicação na preservação da tradição e da cultura crixaense.
Para compor a Academia Crixaense de Letras foram escolhidos os seguintes membros: Sâmia Neves Maciel de Carvalho Amorim Lousan, Sebastiana Esther Dietz de Oliveira, Angélica Rocha Santos, Anália Dias Souto, Francisco Pereira Lemes, Adão Ferreira de Faria Neto, Maria Francisco Maciel Oliveira, Darcy Moreira Bolentine, Ursulino Tavares Leão, João Marega, Guilherme Frederico Dietz, Arlindo Dias Souto, Inácio Pereira Neves, Sueleyla Ferreira Ramos Souto, Maria Maciel Araújo Bastos, Eulâmpia Neves Ferreira, Inácio Pereira Neves Filho, William Xavier Machado e José Xavier Rodovalho.
O clima de descontração não se restringiu à solenidade de criação do sodalício. Durante o almoço, na residência de meus pais, o convidado ilustre sentiu-se à vontade entretendo-se, ora saboreando o tradicional pequi, ora relembrando casos antigos, da época de Tomaz Leão, pai do honrado escritor. Resistiu ele à tentação de provar o doce de laranja e de leite, mas não fez feio: ocupou-se em elogiar a funcionalidade da grande mesa redonda, de centro giratório, onde prosseguiu a prosa. Todos puxávamos a memória e, pouco a pouco, fomos relembrando vários casos antigos, ocorridos em Crixás. À certa altura da prosa, ao puxar um assunto, minha mãe, com certa intimidade, dirigiu-se ao velho amigo, chamando-o de “Dr. Leãozinho”. “Gostei, gostei, já tinha muito tempo que não ouvia as pessoas me chamarem assim”, respondeu ele emocionado, abrindo um largo sorriso de felicidade. É que, no passado, os crixaenses, sem faltarem ao respeito e, dando forma carinhosa ao seu sobrenome “Leão”, chamavam-o de “Dr. Leãozinho”. À tarde, durante seu pronunciamento na criação da academia, expôs ele a festejada redescoberta do carinhoso apelido.
Outro fato espirituoso e marcante na visita do Dr. Ursulino a Crixás foi quando, à noite, saimos para fazer um lanche. Não sabendo onde levá-lo dirigi, vagarosamente, o veículo pela cidade, na tentativa de encontrar uma pizzaria, pois eu já sabia a dificuldade que era encontrar em Crixás um restaurante ou outro local que pudesse acolher um convidado tão importante. Pouco tempo foi preciso para percorrer quase toda a cidade, não sem antes levá-lo à “Escola Municipal de Educação em Tempo Integral Ursulino Tavares Leão”. Para ele foi como “lamber a cria” já que, nos pronunciamentos da tarde, vários oradores haviam feito referências às obras públicas de Crixás batizadas com o nome do eminente escritor, entre elas o “Espaço Cultural Ursulino Leão”, conhecido por “Casario” (conjunto de três casas remanescentes do ciclo do ouro e que foram restauradas em Crixás).
Por coincidência, a pizzaria escolhida fica ao lado da casa onde nasceu o Dr. Ursulino, o que o deixou, ainda mais, feliz. Com ar jovial e, demonstrando intimidade, não hesitou ele em perguntar ao garçom se ali servia uísque. "Não, não temos", foi a resposta óbvia, recheada de doçura, proporcional à pergunta feita. Entretanto, o sorriso moleque do garçom permitiu ao desconhecido cliente avançar, ainda mais, em sua empreitada, resultando num inusitado insight: "você me vende o gelo que eu te vendo o uísque, combinado?”. Não demorou e um pequeno pote de gelo chegou à mesa. Mais que depressa, do casaco do velho moço saiu uma pequena garrafa de uísque, daquelas miniaturas que mais agradam pelo formato e tamanho que pela quantidade. Descontraído, o novo freguês disse logo ser apreciador do escocês Cutty Sark, 8 anos. Sem demonstrar arrogância, deu uma boa aula sobre o destilado, afirmando que o Cutty Sark trata-se de um blended scotch whisky que nasceu de uma mistura de uísques de malte e de grãos, envelhecidos de 3 a 8 anos em carvalho americano, que lhe confere toque de baunilha, e final frutado, limpo e seco, com teor alcoólico de 40%. Os que estavam à mesa, por conhecerem patavina sobre uísque, ficaram estupefatamente maravilhados, tendo eu me disfarçado pedindo uma dose de campari. Após insistir com as minhas irmãs Sâmia e Magaly, com o meu cunhado David, com a minha sobrinha Débora, e com as primas, Maciel e Eulâmpia, para que o acompanhasse naquela façanha e, não tendo encontrado companhia, resolveu o mocinho animado deleitar-se desacompanhado, tendo despejado gotas de uísque sobre o gelo que já se encontrava no copo. Mas, o pior estava por acontecer. Ao tomar o primeiro gole, veio a desagradável surpresa: o líquido do recipiente não se tratava de uísque, mas de pinga. Decepcionado, o distinto cliente procurou mil explicações para o ocorrido. Teria sido ele enganado por amigos que o presenteiam? Porque alguém iria fazê-lo passar por tamanha decepção? Oras bolas, justo ele que passou a tarde toda insinuando que, à noite, tomaria um uísque e que, na dúvida, sempre leva à tiracolo um escocês 8 anos. Vergonha à parte, procurou ele, com admirável esperteza, minimizar a gafe: "também gosto de uma boa cachaça, deve ser presente de algum amigo que não me recordo" - esquivou-se pela tangente, cuidando, logo, de bicar o aguardente. A sagacidade e afabilidade do honrado amigo foram sucientes para evitar qualquer comentário pejorativo da parte dos presentes, tendo a noitada continuado em tom ainda mais animado. Tamanha era a empolgação do amigão que, à certa altura, pensei em entoar a música “O Leãozinho”, de Caetano Veloso, que não me saía da cabeça, voltando-me à adolescência: "Gosto muito de te ver, leãozinho, caminhando sob o sol; Gosto muito de você leãozinho; para desentristecer, leãozinho; Basta eu encontrar você no caminho". Infelizmente, a única dose de campari que tomei não foi suficiente para encorajar-me a cantar a mais linda música gravada em minha memória, cujo sucesso remonta a época em que eu vendia "geladinho" pelas ruas tortas de Crixás.
Verdade é que foi muito gratificante estar na companhia do Dr. Ursulino naquele dia tão especial. Não sei onde o "leãozinho" encontra tanta energia e disposição para levar a vida de maneira tão leve, alegre e descontraída, já sendo ele adiantado em anos de idade. Só sei que sua higidez física, moral e intelectual é motivo de orgulho pra todos nós, crixaenses.
Filho de pais maranhenses, Ursulino nasceu no dia 10 de setembro de 1923, em Crixás, onde seus pais estabeleceram comércio. Foi casado com Gislene Petrillo Leão (Dona Lena), com quem teve dois filhos. No ano de 1950, Ursulino colou grau na Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte.
Advogado conceituado, Ursulino foi Conselheiro da OAB-GO e professor universitário. Na política, foi Deputado Estadual nas legislaturas 1963/1967 e 1967/1971. Em 15 de março de 1971, tomou posse como Vice-governador na chapa do engenheiro Leonino Di Ramos Caiado, tendo assumido o governo goiano de 2 a 12 de julho de 1973. No governo Irapuan Costa Júnior, exerceu a função de Procurador Geral de Justiça do Estado de Goiás.
Membro da Academia Goiana de Letras, Ursulino foi presidente da entidade de 1969 a 1985. É membro, também, da Academia Brasiliense de Letras e sócio honorário da Academia Catalana de Letras, tendo sido agraciado com o título de “Comendador”, e com o “Colar Marechal Rondon” pela Sociedade Geográfica Brasileira de São Paulo.
Como escritor, publicou várias obras, muitas delas adotadas em provas do vestibular, destacando-se os romances Maya, Praça da Vereda Maior, Depois e ainda e Judith; os contos Existência de Marina e Rodovia preferencial; e os poemas Salmos da terra e Santidade e Poesia; além da crônica Vaga-Lumes na neblina.
Diz a antiga tradição oral que a proteção pedida a Santa Luzia se deve ao fato de que ela teria arrancado os próprios olhos, entregando-os ao carrasco, preferindo isso a renegar a fé em Cristo. A arte perpetuou seu ato extremo de fidelidade cristã através da pintura e da literatura, com destaque para a obra “A Divina Comédia, de Dante Alighieri. O dia 13 de dezembro de 2014 marcou épóca na história recente de Crixás. A fidelidade de Ursulino Leão à sua terra natal traduz-se num despertar para um novo tempo rumo ao aprimoramento e perpetuação da literatura local. Não há dúvida de que a Academia Crixaense de Letras constitui terreno fértil a esse desiderato.
Assim como, em 1897, os membros da Academia Brasileira de Letras batizaram-na "Casa de Machado de Assis", peço vênia aos demais membros de nossa Academia para, tomando como empréstimo a justa homenagem feita por aquela Casa Maior ao maior romancista brasileiro, batizar a Academia Crixaense de Letras de "Casa de Ursulino Tavares Leão". A expectativa é que a homenagem traga regozijo ao homenageado, renovando suas forças para que possamos desfrutar, por longos anos, de sua jovialidade e invejável simpatia.
Diário da Manhã - 23/1/2015