Leia o artigo da Promotora Alessandra Elias de Queiroga publicado no site Congresso em Foco.
A quem interessa limitar as escutas telefônicas?
Alessandra Elias de Queiroga
Promotora de Justiça
Convidada a participar do Programa Expressão Nacional, da TV Câmara, na última terça-feira (19), pude confirmar a excelência e originalidade com que aquele canal público de comunicação abre espaços profícuos, informativos e democráticos de discussão dos principais temas da vida nacional.
O assunto proposto foi “Os grampos judiciais e clandestinos”, com foco nas propostas de mudanças legislativas e a possível ocorrência de abusos na utilização deste método de investigação. Também participaram do debate o deputado Nelson Pellegrino (PT-BA), relator da CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas; o deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), presidente da mencionada CPI; o delegado Sandro Torres Avelar, presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal; e o advogado Marcos Vinícius Couto, conselheiro federal da OAB.
A minha expectativa, como representante do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas do Ministério Público brasileiro, era defender, da maneira mais contundente possível, a total necessidade de se utilizar o processo de interceptação das comunicações, em todas as suas modalidades, como a forma inegavelmente mais eficaz de combate ao crime organizado.
Como se sabe, as organizações criminosas estão estabelecidas nas entranhas de nosso país. Promovem toda sorte de malefícios para a sociedade, corroem as instituições, corrompem a infância e a adolescência e aumentam exponencialmente o abismo social no Brasil. A maneira empresarial como estão estruturadas, a abundância de dinheiro para garantir suas empreitadas e, em especial, a forma como se apoderaram de grande parcela dos agentes públicos, tornando e alimentando nosso Estado corrupto, clama por uma verdadeira cruzada investigatória para que ainda possamos esboçar alguma reação, antes que não seja mais possível.
E a verdade é que as grandes empreitadas criminosas, na quase totalidade das vezes, só são realmente descobertas através da interceptação das comunicações de dados e voz de seus integrantes.
Assim, baseada em mais de uma década de experiência com os chamados “grampos telefônicos”, cheguei ao debate disposta a defender que as constatações da CPI dos Grampos Clandestinos, em termos numéricos absolutos, estavam sendo vistas sob o prisma errado. Calcada em dados fornecidos pelas empresas de telefonia, no número de ocorrências policiais registradas nos estados de Federação, no total da população carcerária do Brasil e nos percentuais de apuração dos crimes comunicados oficialmente, tinha eu a firme convicção sobre como deveria responder à pergunta-chave que norteava o programa televisivo: não, absolutamente não se pode considerar descabido o fato de terem sido realizadas cerca de 409 mil interceptações durante o ano de 2007.
Ocorre que, durante o rápido diálogo travado durante o programa e, especialmente, nos intervalos, percebi que a grande preocupação dos integrantes da CPI dos Grampos era a constatação fática de inúmeros casos de abusos praticados pelos três atores principais do processo, o magistrado, o Ministério Público e a polícia judiciária. Os fatos relatados, que foram apurados por aquela instância investigatória, são graves, mostram mau uso do instrumento e realmente colocam em questão a responsabilidade do Estado na condução desse processo.
Não em termos estatísticos. Não é esse o problema. Crimes gravíssimos, vários deles jamais contabilizados porque nem chegam ao conhecimento do poder público, crescem em velocidade cibernética. Só a população carcerária do país ultrapassou a casa dos 422 mil reclusos, e, ainda assim, as cidades estão a cada dia mais intranqüilas, inviáveis, com cidadãos sitiados. Qual será, então, o número de criminosos de alto poder ofensivo, organizados ou não, que se encontram nas ruas e que deveriam estar sendo investigados, processados, condenados e encarcerados?
A preocupação, então, não deve ser com a existência de um grande número de interceptações em curso, mas com o seu mau uso, com a disfunção desse sistema de investigação que, se utilizado da maneira correta, só traz benefícios para a sociedade.
Essas disfunções podem ser corrigidas pelo Estado, mas não devem servir como desculpa para a inviabilização do procedimento de investigação. Não se descobrem “laranjas”, ou métodos de lavagem de dinheiro, ou participação de agentes públicos, sem a interceptação de suspeitos. O efetivo policial e de membros do Ministério Público teria que ser 20, 30 vezes maior para que pudéssemos nos dar ao luxo de não lidar com esse meio de prova – o qual, diga-se de passagem, traz dissabores e dificuldades para quem o coleta.
Um outro problema gravíssimo que foi discutido, e que não pode ser contornado com simples mudança legislativa, é a existência, finalmente comprovada, de grampos clandestinos. Eles têm atingido autoridades públicas, empresários, casais enciumados e toda a sorte de pessoas comuns e não-comuns, e finalmente são discutidos em espaço democrático.
O que não se pode admitir, repito, é que os maus exemplos, as condutas criminosas, a disfunções sirvam como pretexto para retirar do Ministério Público, da polícia judiciária e da magistratura esse poderoso instrumento de elucidação de fatos criminosos. Seria a vitória completa do crime, em nome de um valor, a dignidade da pessoa humana, justamente o que está sendo aniquilado em razão do estado de selvageria, corrupção e total insegurança que tem origem no crime desenfreado que atinge a todos nós.
Assim, há aspectos dos projetos de lei que estão tramitando – em regime de urgência, é bom frisar – no Congresso Nacional que devem merecer uma reflexão aprofundada, pois a tendência é dificultar sobremaneira a realização das interceptações, sendo que algumas propostas chegam a inviabilizar a sua utilização como meio de prova.
Podemos citar, como primeiro exemplo das dificuldades que se pretende que sejam implementadas, a fixação do prazo máximo de 30 dias, prorrogável por uma única vez, para a realização da interceptação, excetuando-se apenas os casos de terrorismo e extorsão mediante seqüestro. A lei que está em vigor prevê o prazo de 15 dias, mas a prorrogação pode ocorrer sempre que se encontrarem presentes os motivos que autorizaram a realização da interceptação. Nesse ponto, o projeto de lei recentemente enviado pelo Poder Executivo (PL 3272/2008) é muito mais condizente com a realidade de uma investigação sobre crime organizado, pois fixa como tempo máximo para a interceptação, 360 dias ininterruptos, ainda contemplando exceções.
Existem também propostas que impedem a utilização da comunicação interceptada como elemento de prova para o início de uma outra investigação distinta daquela que ensejou a medida. Assim, se estivermos acompanhando uma comunicação telefônica no bojo de um inquérito policial que visa a desbaratar uma quadrilha de roubo de cargas e, através dos áudios, descobrimos que essa quadrilha também trafica órgãos humanos, não poderíamos utilizar os diálogos para iniciar uma investigação específica sobre tráfico de órgãos. Também nesse ponto, o projeto de lei remetido ao Congresso pelo Executivo é bem mais avançado e autoriza o envio dos áudios, ao Ministério Público, para a adoção das providências necessárias.
Outro ponto polêmico, mas muito importante, é a tendência, mesmo no projeto de autoria do Executivo, de não se aceitar, de forma alguma, a utilização de diálogo travado entre o investigado e seu defensor, sem excepcionar, de maneira clara, que, por vezes, o defensor do investigado é um dos principais integrantes da organização criminosa. Essa imunidade que se pretende dar aos defensores é uma venda na realidade, pois se sabe que grandes organizações não prescindem da conduta ativa de maus advogados, alguns dos quais planejam as ações criminosas e dão aparência de legalidade às mesmas, especialmente nos chamados “crimes do colarinho branco”.
Lamentável, ainda, a tendência dos projetos de lei oriundos dos congressistas – tendência não abraçada pelo Poder Executivo no PL 3272/2008 – de retirar do Ministério Público a possibilidade de requerer, no curso do inquérito policial, a realização da interceptação de dados e voz. Essa possibilidade óbvia é expressa na legislação atual (Lei nº 9.296/96) e vem sendo utilizada da maneira mais comedida possível, prestando o Ministério Público um grande serviço à nação, especialmente quando, por motivos diversos, a autoridade policial não se esmera na elucidação do crime, ou é ela mesma a investigada.
Essa discussão é tão importante para o país que merecia atenção especial da TV Câmara, que deveria propiciar um debate sincero sobre os interesses que existem por trás dos projetos de lei que procuram, cada vez mais, enfraquecer o Ministério Público brasileiro, única instituição inteiramente independente, afastada de deveres de hierarquia e compromissos políticos.
Embora sejam vários os aspectos passíveis de críticas e sugestões no que se refere aos projetos em tramitação, entendo que o mais importante, porque mais pernicioso, é o dispositivo que pretende que, para ser utilizada uma escuta telefônica como prova em processo, faz-se necessária sua transcrição integral, isto é, a degravação de todos os áudios captados. Esse texto é um verdadeiro disparate e, na prática, inviabiliza o uso da interceptação telefônica como meio de investigação.
Em uma das últimas investigações levadas a efeito pelo Núcleo de Combate às Organizações Criminosas do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, batizada de Operação Aquarela, foram interceptados mais de 60 mil áudios, alguns deles com duração de mais de uma hora. Imagine quantas pessoas durante quanto tempo teriam que trabalhar, com absoluta exclusividade, para degravar todo o seu conteúdo. Imagine quantas conversas privadas, totalmente divorciadas do objeto de investigação, seriam transcritas, de maneira completamente atentatória aos princípios constitucionais que preservam a intimidade das pessoas, os valores da família, a dignidade de cada um de nós. Qual o interesse desse dispositivo? Com toda sinceridade, penso que só há duas hipóteses, ambas lamentáveis: ou se desconhece completamente a realidade e a mecânica da degravação de áudio, bem como a escassez de recursos humanos que impera em todas as instituições investigatórias, ou se pretende, através de subterfúgios, suprimir a realização da interceptação das comunicações como meio de prova.
A discussão desse temas, embora não tenha sido aprofundada durante o debate, possibilitou que provocássemos, de forma democrática, o interesse da sociedade para a sua importância. A mim, particularmente, trouxe o debate a grande alegria de perceber que todos os seus participantes estavam preocupados com questões sérias, buscando aperfeiçoar o modelo, sendo unânimes em afirmar que a interceptação telefônica é um meio imprescindível para o combate ao crime organizado.
Foi importante, ainda, tomar conhecimento dos casos práticos em que os integrantes da CPI perceberam, ao que parece com razão, a existência de abusos cometidos, os quais têm que ser seriamente coibidos, cabendo ao Ministério Público a missão de fiscalizar de maneira mais efetiva o deferimento e a produção dessa prova de caráter excepcional.
Assim, como dito no início, o saldo do debate foi extremamente positivo e a TV Câmara é cada vez mais imprescindível na formação do cidadão brasileiro, apresentando programas apartidários, independentes e de excelente qualidade, motivo de orgulho nacional.
Como não poderia deixar de fazer, torno a solicitar que, em ocasião próxima, o programa “Expressão Nacional” traga ao debate o poder investigatório do Ministério Público, esclarecendo à população a verdadeira natureza da nossa instituição. Acredito que, assim, a TV Câmara estaria prestando um grandioso serviço a todos os brasileiros e brasileiras.
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