Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Acontece que, em um ambiente familiar não-saudável, as coisas se invertem. Tudo o que foi dito até aqui recebe um sinal contrário. A amizade vai se esgarçando como um fosso entre os autores e a comunhão vai se tornando política, porque esta trata da convivência entre diferentes: "Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças. A ruína da política em ambos os lados surge do desenvolvimento de corpos políticos a partir da família" (H. Arendt).
O contexto da intimidade familiar, em princípio, não é político porque as pessoas são insubstituíveis em razão do que são, e não, como na sociedade, fungíveis, ou simplesmente descartáveis, em razão do que fazem ou deixam de fazer. A utilidade toma o espaço do "em si". Não é por outra razão que muitos parentes resolvem (ou melhor, não resolvem) suas contendas nas Varas de Família, quando não nas Varas Criminais.
O filho não confia no mau pai, aquele que o trata com indiferença ou agressividade, que por ele não faz o menor sacrifício, descura grosseiramente de sua educação, aplica-lhe punições desproporcionais, esquece a data de seu aniversário. O filho perde o respeito pelo pai que não trabalha (porque não quer), que com freqüência chega em casa de madrugada, após bebedeiras e badalações, oportunidades em que o escuta quebrando objetos, brigando com a mãe, vomitando.
Há pais que vão mais longe, e abusam sexualmente da própria prole ou a abandonam. Esses, se funcionam como exemplos, é apenas em um sentido contrário, pois os filhos se esforçarão para evitar tudo o que viram e sentiram – e quantas vezes não conseguirão! Outros maus pais fingem-se de bons, como Herodíades, que sugeriu à filha, Salomé, com a contrição hipócrita dos malvados, a cabeça de João Batista ao rei Herodes, seu cunhado e amante.
Se as normas funcionam então como uma figura paterna, não apenas para os juízes, mas para as pessoas em geral, a pergunta que se coloca é que tipo de "pai" o Estado realmente é. Se consegue forjar a imagem do bom e amoroso, ou se a "moralidade administrativa" não passa de um discurso formal e vazio, pois não se sabe – nem se quer saber – o que a caracteriza e muito menos se conhecem medidas adequadas para controlá-las, antes e durante a investidura do agente em seu cargo público. É uma situação embaraçosa para o intérprete ter que desembargar a diferença existente entre "reputação ilibada", "conduta ilibada" e "idoneidade moral e reputação ilibada". Da minha parte, confesso que não faço a menor idéia.
Para se engendrar a legitimidade da autoridade estatal, forja-se o sentimento do chamado "dever moral de obedecer à lei", não como o das vítimas de um assalto que, na agonia da morte, acatam as determinações de seus verdugos, mas como um direito de se exigir obediência. A retórica acerca do poder do Estado não aceita qualquer espécie de dominação ou influência sobre outras pessoas: "Um mínimo de vontade de obedecer, isto é, de interesse na obediência, faz parte de toda relação autêntica de dominação", nas palavras de Max Weber.
Isso gera uma "aura ou mística peculiar" (D. Lloyd), e essa aura já teve configurações históricas as mais diversas, desde a inspiração divina, onde o nome (ou o pretexto) de Deus foi usado para comunicar um fato extraordinário – o de que rei é infalível e não erra ("the king can do no wrong", em inglês; "le roi ne peut mal faire", no francês) –, até algo mais profano, menos pretensioso (que Weber dividiu em carisma, domínio tradicional e domínio legal). Hoje falamos em "moralidade administrativa" como um postulado, ou seja, como algo que não precisa de explicação.
Ainda assim, eu sempre achei que os palácios reais e presidenciais muito se parecem com a sarça ardente do Monte Horeb, sobre a qual disse o Senhor a Moisés: "Não te aproximes daqui!Tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás é terra santa" (Êxodo, 3:5). Tenta entrar no Palácio do Planalto para conversar com o presidente e verás.
Jornal de Brasília