Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Não é de hoje que se fala em assédio sexual, que vem a ser o constrangimento imposto pelo chefe com o intuito de obter do subordinado algum tipo de vantagem lúbrica. Desde 2001, com a Lei Federal 10.224, o Código Penal, em sua infinita sabedoria, pune essa conduta com até 2 anos de detenção. Se existe previsão para que um tal crime seja objeto de castigo é porque o ato existe, e isso não acontece à toa. Muitas pessoas detestam a idéia de se sujeitarem ao mais superficial contato físico involuntário ou ao capricho impertinente de galanteios safardanas, principalmente vindo de alguém com quem não se tem uma relação simétrica. Mas não é pela força do desejo das vítimas que os delitos deixam de acontecer. Nem é a vítima quem define o crime; ela não é senão uma das peças da máquina da justiça criminal.
O que mais me chama a atenção nesse departamento é o nicho da empregada doméstica, ou seja, aquela mulher que passa várias horas do dia dentro da sua casa, em serviços como administração de suas refeições e roupas, limpeza da sua retrete, e outras atividades inevitavelmente íntimas. Ao cabo do expediente, a “mulher-a-dias” (como se diz em Portugal) pega 1 ou 2 ônibus de volta para a sua residência, onde tem as suas próprias peculiaridades e problemas pessoais, que a patroa não quer nem ouvir falar. Não são problema seu.
Muitas vezes me pergunto se não vale a pena a Dona Cláudia pagar um tratamento odontológico para a Silvaneide, que coloca a colher na boca, a mesma colher que volta para a panela da comida que está sendo preparada e que será consumida pelo maridão, pelo Júnior e pela Luísa. Não é nada improvável que Silvaneide tenha placa bacteriana, tártaro, gengivite e cáries que imploram de joelhos por obturações ou tratamento de canal. Enfim, ela pode ter os dentes podres, e nem saber, ou desconfiar mas nada fazer, ou nada poder fazer. Estou dando só um exemplo para ilustrar que se não se está pisando no terreno da generosidade (que não pode exigir reciprocidade; lembremos que a relação não é entre iguais), está-se diante de uma questão básica de higiene familiar. Algumas empregadas desenvolvem ódio ou rancor contra a madame, o que às vezes conduz a resultados desagradáveis, quiçá trágicos.
Vamos convir que uma grande distância separa as escravas de ontem das a-dias de hoje, mas tratar as últimas com superioridade sexual remonta à covardia dos sinhozinhos que se fartavam nos favores forçados das suas negras, que eram porque eram propriedade sua. E a covardia homologa a imoralidade do ato, fora de qualquer contexto, para a qual aponta um Karl Jaspers, implicante com os homens que “dispõem de mulheres para diferentes fins”. Para ele, “isso degrada a mulher e torna o homem indigno desse nome, despoja uma e outro da própria dignidade”. Para mim também. A propósito, vejo no último livro do Fonseca que uma das tarefas que ele atribui à sua empregada é a leitura obrigatória, por uma hora diária, do que ela bem quiser. Acho que vou fazer mesmo, mas com mais calma: vou mandar a minha a-dias ler os meus artigos. Se ela disser, “gostei, Seu Ivaldo”, ganha um bônus. Não exijo sinceridade e nem escrevo em busca de afeição ou reconhecimento: a partir de hoje, escrevo é para a minha empregada.
O cômodo da casa do Fonseca, que funciona como biblioteca é apelidado de “O quarto dos macacos”. Por falar nisso, relembro que o estudo do comportamento dos chimpanzés (que, atenção!, não são macacos!) e sua comparação com o dos humanos tem uma grande vantagem e uma grande desvantagem. A primeira é que a pesquisa desce ao primórdio dos primórdios, e tem a pretensão de decantar da influência das roupagens culturais o que o homem teria de mais autêntico, de mais natural. O problema é que não se sabe se nós e os pan troglodytes somos realmente parentes, posto que distantes. A certeza de que descendemos diretamente desse pessoal não é daquelas absolutas, e há dúvidas em relação a ancestrais muito mais recentes.
Pois é dos primatas que surgiu a expressão “assédio sexual”, completamente distinta da utilizada hoje pela lei penal e pelo vulgo, consoante explicarei na segunda parte deste artigo.
Jornal de Brasília