Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - A natureza jurídica do chilique

MPDFT

Menu
<

Ivaldo Lemos Júnior
Promotor de Justiça do MPDFT

Pois eu falava sobre a origem da expressão “assédio sexual” (A.S.), “sexual harassment”, em inglês. Adiantei que ela provinha da literatura primatológica e foi tomada de empréstimo pela lei penal como também pela linguagem coloquial, mas com uma semântica muito diferente.

Para nós, A.S. é aquela conduta do chefe, lasciva, cheia de segundas intenções, cometida contra a subordinada, que se sente ao mesmo tempo encabulada e indefesa. Pode ser uma piada de duplo sentido, uma cantada mais grosseira, um passar de mãos no cabelo ou na cintura, e por aí vai. Pode ser um pouco de tudo isso, na base da persistência, do cansaço. O palco do crime é tanto a repartição pública quanto o local privado do emprego.

Em primatologia, quem pratica o crime não são os superiores hierárquicos. São as crianças. A.S. consiste no fato de os menores pularem nos adultos assim que estes dão início a uma sessão de congresso carnal. Eles se intrometem tentando apartar os parceiros, empurrando-os, jogando terra ou fazendo as chamadas “intimidation displays” (demonstrações de intimidação: gritos, latidos, batidas no peito ou no chão etc.). O assédio não chega a ser agressivo, mas é, sem dúvida, disruptivo.

Não se sabe bem porque ele ocorre. A explicação de ciúmes é óbvia e decerto verossímil. Mas uma teoria procura ir um pouco além, afirmando que os infantes tentam impedir que a mãe fique prenhe de novo, no que nada teriam a ganhar; ao contrário, com um irmãozinho, só perderiam em termos de amamentação, transporte e colo. Essa tese pode ser excessivamente elaborada, porque exige que os pequenos saibam ou ao menos intuam que a conjunção é potencialmente geradora de novas crias. Acontece que os adultos são muito tolerantes com o A.S., mas até o limite de sua inofensividade. Quando o assediador passa a participar do contubérnio mais a sério do que com status de café-com-leite (a atividade sexual se ativa por volta dos 8 anos, mas chimpanzés são socialmente maduros mais ou menos aos 15), ele é colocado em seu devido lugar, com toda a brutalidade que essas situações costumam provocar.

O mais importante é o que esclarece o biólogo Frans De Waal em “Chimpanzee politics”: “o intercurso está sujeito a regras claramente definidas. Os chimpanzés não conhecem a formação de pares exclusivos”, ou seja, não se especializaram na fórmula judaico-cristã dos casamentos monogâmicos, mas nem para eles a vida sexual é “completamente promíscua”. Ao invés, são bem conhecidas complexas danças sedutoras, barganhas, rivalidades, preferências pessoais e também grupais – pode soar estranho, mas as jovens são preteridas em favor de parceiras mais maduras. As regras menstruais são respeitadas e evita-se o incesto.

Sobre o estupro – virtualmente a etapa derradeira do A.S. Humano -, a questão é clara: “a fêmea é livre para escolher entre fazer ou não sexo. Às vezes o macho faz uma pressão agressiva mas, normalmente, é fim de papo se ela não quiser copular”. Em outro livro, “My family album”, De Waal complementa: “mesmo que, em geral, um macho adulto saudável domine qualquer fêmea, isso não significa que ele possa atacá-la impunemente. Se ele agir com mais intensidade do que o usual, outras fêmeas vão protestar; elas o caçarão, ensinando-o que o domínio sobre as fêmeas é aceitável somente dentro de certos limites”. De fato, já foram registradas surras memoráveis.

Apesar das diferenças, temos algo em comum: precisamos de liberdade para que os consórcios amorosos aconteçam e se resolvam o mais naturalmente possível, movidos pela voluntariedade, afeto e desejo. Mas também queremos limites para o território sexual, especialmente sobre mulheres e crianças, e as leis que criminalizam o assédio e o estupro são exemplos disso, assim como as regras do casamento, licença-maternidade e aposentadoria.

Inventaram o direito penal exatamente para que um terceiro (policial, promotor, juiz etc.) seja convocado a interromper ataques e resolver conflitos, sem que as vítimas tenham que fazê-lo por conta própria. Quando enfrentamos nossos problemas aos bandos e aos urros, podemos até ser eficientes, mas retrocedemos aos nossos primórdios antropóides.

Jornal de Brasília

.: voltar :.