Promotora de Justiça do MPDFT
O Estatuto da Criança e do Adolescente traduz as mais modernas tendências na outorga das garantias fundamentais da criança e do adolescente. Apesar de se adotar o Código de Processo Civil como orientador do sistema recursal, na apuração do ato infracional visualizam-se os princípios processuais garantistas, característicos de um sistema acusatório.
O referido sistema é o único compatível com o modelo democrático, uma vez que pressupõe uma divisão de tarefas entre os atores do processo, de modo a garantir a imparcialidade do órgão julgador, bem como a igualdade das partes estabelecendo o contraditório e a ampla defesa.
Nesse contexto, embora o Ministério Público não seja monopolista, pois é apenas um dos personagens da rede integrada de atendimento à criança e ao adolescente, foi escolhido como o ator central na defesa das pessoas em desenvolvimento, considerando-se a gama de atribuições que lhe foram conferidas pelo ECA, que em seu artigo 201 elenca atribuições judiciais e extrajudiciais.
Dentre suas inúmeras atribuições, impende salientar que o Parquet é o titular exclusivo da ação de apuração de ato infracional, ao mesmo tempo em que atua como custos legis. É dizer: embora oficie como parte, não é órgão de acusação e nem simples defensor dos direitos individuais das crianças e adolescentes em conflito com a sociedade, mas o responsável pela ordem jurídica, pelos direitos sociais e individuais indisponíveis.
Assim, extrai-se que o Parquet não tem um poder absoluto de acusar. Pelo contrário, oMinistério Público, como toda instituição que atua em um Estado Democrático de Direito, sabe que seus limites estão postos pela Constituição, pelo ordenamento jurídico e pela interpretação dos Tribunais. Não há nada de sobrenatural nisso.
Imbuído dessa atuação de caráter dúplice, cabe ao Ministério Público, nos termos do artigo 180 do ECA, ao receber um procedimento investigatório de ato infracional, tomar a decisão sobre promover o arquivamento dos autos, conceder a remissão ao adolescente ou oferecer representação.
Essas hipóteses são autônomas entre si, devendo o Parquet optar por uma delas diante do caso concreto. Em obediência ao devido processo legal, é dever da acusação justificar a postura tomada. Porém, não se pode exigir que se fundamente o motivo pelo qual não se optou pelas demais opções. Por exemplo, caso o Ministério Públicoofereça representação, narrando devidamente os fatos atribuídos ao adolescente, outorgando-lhe o exercício da ampla defesa, evidente que restaram afastadas as hipóteses de remissão e de arquivamento, sendo desnecessária qualquer justificativa nesse sentido.
Na fase extrajudicial, incumbe também ao Parquet proceder à oitiva informal do adolescente, nos termos do artigo 179 do ECA. A referida prática tem natureza de procedimento administrativo extrajudicial e não se encontra entre os requisitos para o exercício da ação socioeducativa, não sendo tal providência condição de procedibilidade para o oferecimento de representação. Tampouco se trata de um direito subjetivo do adolescente, salvo quando houver apreensão em flagrante, hipótese em que o jovem deverá ser apresentado em até 24hs ao Promotor de Justiça, que o ouvirá e manifestará pela sua internação provisória ou liberação.
Assim, quando os elementos existentes nos autos já se revelam suficientes para a formação do convencimento do promotor de Justiça e, de pronto, já se verifique que não se trata de hipótese de remissão como exclusão do processo ou de arquivamento, nada impede que o Ministério Público ofereça representação, inaugurando a ação socioeducativa pública, sem prejuízo de, numa fase mais avançada do processo, e com a presença do adolescente, seus responsáveis e seu defensor, ser ajustada uma remissão judicial. Acrescente-se que, em tais situações, a oitiva informal, além de se mostrar totalmente inútil à sua finalidade precípua, é incompatível com o princípio do interesse e da celeridade, que é a tônica de todo o procedimento, uma vez que os adolescentes são pessoas em devolvimento.
Sedimentando o Estado Democrático de Direito, compete ao magistrado exercer o poder administrativo fiscalizador, de modo que, caso discorde do membro do Ministério Público, poderá rejeitar a representação ou, nos casos de arquivamento ou remissão, remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, para que adote umas das hipóteses previstas no artigo 28 do CPP.
Da construção desse sistema, extrai-se a importância do respeito aos ritos procedimentais e processuais estabelecidos, bem como das atribuições de cada ator, sob pena de se macular a imparcialidade do juiz e a separação de poderes. Em outras palavras, ao aplicador da lei cabe apenas interpretá-la diante de eventuais lacunas existentes e, caso não concorde com algum dispositivo, só lhe resta provocar as vias adequadas para que se proceda às alterações legislativas que entender pertinentes.
Correio Braziliense - 28/3/2016
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