Vitor Fernandes Gonçalves
Procurador de Justiça do MPDFT
No famoso estudo sociológico escrito no longínquo ano de 1936, Sérgio Buarque de Hollanda já assinalava como nós, brasileiros, herdamos dos portugueses, um povo aventureiro por excelência, um individualismo e um livre-arbítrio exacerbado, no que resultou entre nós uma sensível repulsa tanto da noção de supremacia da lei, como dos próprios valores da coletividade e da solidariedade. Cada brasileiro age, então, como se fosse um país em si mesmo, dotado de soberania, de modo que somente considera cumprir a lei se e somente se reputá-la justa e adequada, raciocínio que se repete toda vez que tiver de considerar concretamente sua aplicação. De fato, consoante assinala o sociológo citado, “os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes” (cf. Raízes do Brasil, 27ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p.37)
Um exemplo dessa supervalorização da ideia de livre-arbítrio e dessa cumplicidade das instituições com o mais absoluto anarquismo, é a aceitação, entre nós, da circunstância de uma pessoa poder comparecer perante uma autoridade do Estado, na condição formal de investigada ou, mesmo, de ré em um processo civil ou criminal, e mentir descaradamente, sem qualquer pudor. Nesse contexto, é admitido, assim ao investigado como ao réu, inventar estórias, fantasiar, pôr a culpa maliciosamente em terceiros, e mesmo criar dolosamente argumentos, com o fim específico de tentar confundir as autoridades e enganá-las quanto à apreciação dos fatos, que tudo se dará por válido, dentre de nossa amplíssima noção de “ampla defesa”.
Realmente, na esmagadora maioria das demais nações civilizadas, uma pessoa formalmente investigada ou ré pode logicamente exercer o seu direito de permanecer calada, para não se autoincriminar. Mas, se abrir a boca para falar alguma coisa, terá de dizer a verdade, sob pena de ser processada pelo crime de perjúrio, caso se verifique que aquilo que disse era mentira. Aqui, todavia, perjúrio só pode ser aplicado a testemunhas, enquanto os investigados e réus depõem como informantes, onde sua palavra não é levada a sério, a tal ponto que mesmo se confessarem cabalmente seus crimes, tal confissão não porá fim, nem à investigação, nem ao processo.
O próprio Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência em que expressamente reconhece irrestritamente o “direito de mentir” de cada brasileiro (HC 75257/RJ, Primeira Turma, Relator, Ministro Moreira Alves, julgado em 17/06/1997). Também o Superior Tribunal de Justiça admite o direito de mentir, conquanto mais recentemente tenham surgido decisões daquela Corte afirmando o caráter socialmente desabonador da mentira (Resp 801249/SC, Terceira Turma, Relatora, Ministra Nancy Andrighi, julgado em 09/08/2007) assim como várias decisões no sentido de que investigados ou réus podem mentir sobre qualquer fato que lhes seja imputado, menos sobre sua própria identidade, o que tem sido considerado um abuso do direito de mentir (cf., a título de exemplo, o HC 151866/RJ, Quinta Turma, Relator, Ministro Jorge Mussi, julgado em 01/12/2011). Essa novel jurisprudência, mais restritiva, também considera ilegal a prática de crimes autônomos para o fim de autodefesa (HC 205292, Sexta Turma, Relator, Ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 04/12/2012).
Aproveitando essa mudança nos rumos da jurisprudência nacional, releva salientar que, nos tempos atuais, em que a Operação Lava-Jato procura por a limpo as nossas instituições e resgatar a verdade tão odiosamente escondida dos brasileiros por criminosos que saquearam o patrimônio público nacional na última década, e que não obstante afirmam que “nada sabiam”, urge que o valor intrínseco da verdade seja mais respeitado, em nome de uma maior autoridade e dignidade da Justiça e do verdadeiro amadurecimento do nosso Estado Democrático de Direito.
Nesse diapasão, impõe-se de lege ferenda, portanto, a aprovação de projeto de lei que determine a ampliação da figura criminal do perjúrio, atualmente inserida dentre os Crimes contra a Administração da Justiça e devidamente capitulada no art. 342 do Código Penal, e seus parágrafos, para incluir como possíveis sujeitos ativos também os investigados e réus, a exemplo das testemunhas e dos peritos, contadores e intérpretes, já obrigados por lei a dizer a verdade.
Correio Braziliense - 28/3/2016
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