Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Têm-se falado bastante em “rasgar a constituição”. Muitos são acusados de fazer isso, o presidente do Supremo, o do Senado, os procuradores do Ministério Público, o famoso juiz Moro. Já chamaram maldosamente o ínclito ministro do STF Marco Aurélio de “Marco Aurélio Mãos de Tesoura”.
A expressão é uma metonímia, tanto quanto “beber uma taça” (bebe-se o líquido, não a taça) ou “ler Honoré de Balzac” (o que se lê é o escrito produzido pelo ser humano que Balzac foi). Rasgável é o papel em que foram impressos os artigos da constituição; esta é um objeto que não corresponde ao modelo popperiano de realidade e, como tal, não pode ser confundida com sua encadernação. A crítica em questão aponta para uma decisão tida como inaceitável ou maliciosa. Em juridiquês: teratológica.
O leigo, por definição, desconhece as mais variadas técnicas hermenêuticas, e é livre para extrair o sentido que quiser de dispositivos constitucionais e legais. Mas esse esforço é por sua conta e risco; nada garante que prevalecerá. Para Karl Larenz, “o jurista se contenta frequentemente com a mera ‘plausibilidade’, quando o leigo espera ‘correção’ comprovável”. Se, por um lado, o homem comum se limita à literalidade da lei, cujo acesso é disponível a todos os alfabetizados – ou aos que conhecem o material apenas por ouvir dizer –, por outro, viceja a necessidade de satisfação do instinto ou de uma ideia particular de justiça.
E mais: o arremedo de psicólogo e analista político que inspira o vulgo também pode levá-lo à conclusão que quiser acerca da interpretação do intérprete, seja ele qualificado jurídica ou intelectualmente. “Legislações são esquemas externos da vida pública”, dizia Ortega y Gasset. Se a vida pública fosse um bolo, nem todos os seus ingredientes seriam compatíveis ou saborosos.
Jornal de Brasília - 17/10/2016
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