Ivaldo Lemos Júnior
Promotor de Justiça do MPDFT
Fico a meditar sobre um fictício povoado distante da civilização, perdido em um tempo que só pode ser contado em dezenas de milênios e que não deixou muitos vestígios a colaborar na montagem do quebra-cabeças de sua existência. Esse tipo de jogo costuma ter mais peças faltando do que disponíveis em cima da mesa. É utilizada tamanha imaginação, que a ciência corre o risco de se transformar em ficção científica pura e simples.
A imagem estereotipada é a de grupos minúsculos compostos de gente feia e malcheirosa, passando fome, sede e frio ou calor. Viviam em cavernas, ou melhor: sobreviviam, sob o signo da desgraça e da necessidade. As condições de higiene e saúde eram deploráveis, e constantes os perigos da intimidade excessiva com a natureza, especialmente no que concerne à gula dos animais ferozes. Os próprios homens eram feras, porque conquistavam as mulheres batendo com porretes em suas cabeças, e com elas se permitiam fazer o que bem queriam.
Até que ponto esse retrato é acurado ninguém sabe dizer. Provavelmente em parte, embora a questão do porrete seja fortemente idealizada, porque nenhuma sociedade jamais percebeu o estupro como uma conduta aceitável. Além disso, o homem da caverna não vivia DENTRO dela (depois eu explico essa).
Mas também é possível que o retrato reflita uma imagem propositadamente invertida, no melhor estilo espelho-meu-espelho-meu, daquilo que gostaríamos de ser nós mesmos: gente fina, sadia, sedutora, que esbanja abundância do conforto e alegria da segurança. Somos seres racionais, artísticos, tecnológicos e jurídicos, e não queremos voltar ao relento e à rapina. A sugestão de Bachelard – “talvez nosso ancestral fosse mais afável ante o prazer, mais consciente de sua felicidade, na proporção em que era menos delicado no sofrimento” – não parece ter sido acolhida com muito entusiasmo.
Um dia acontece algo diferente: um homem morre. Em si, a visão daquela figura de longos cabelos desgrenhados, estática e indefesa, não era nova. Outras pessoas já haviam falecido e definhado à vista dos que lhes sobreviveram, quase sempre com menos de 17, 18 anos de idade. Adolescentes, para nós. Para eles, o fato da morte era sobretudo incompreensível, até porque, há poucos dias, aquele cadáver exalava vida, e vida em demasia, uma vez que também ele tirava proveito do espancamento do sexo oposto. E de repente não mais.
Mas as mulheres, sempre as mulheres. Uma delas não se deixou sucumbir pelo asco provocado por aquele corpo apodrecido, que não convidava ao toque. Derrotou o alívio de um de seus algozes tê-la deixado em paz, e fez algo inusitado: enterrou-o. Fê-lo com as próprias mãos, contando com o auxílio improvisado de paus e pedras, no que foi testemunhado pela surpresa dos demais. Ninguém ousou ajudá-la. A pioneira na arte do enterramento humano agiu motivada pela generosidade anônima das grandes mulheres, mas também por uma dose de algo estranho, misterioso, que ela não saberia explicar – nem poderia, porque seu vocabulário era reduzidíssimo, e a comunicação em geral primava pelo gesto e não pela palavra.
A partir daí, todos os mortos passaram a ser enterrados, seja por motivos sanitários, seja por deferência à memória do finado, ou por ambas as razões. Nas técnicas atuais, o corpo é depositado em uma caixa (“caixão”) antes de ir ao solo, que deve ser gretado em profundidade e coberto e, por fora, ornamentado com nomes, datas, flores, símbolos.
O que realmente difere é a relação entre vivos e mortos. Se aquela mulher não sabia explicar o sentimento que lhe assaltou, sabemos nós: era medo. Esse medo gerou respeito. O homem passou a adorar seus mortos e oferecer-lhes comidas e dirigir-lhes preces. O culto urdiu a idéia do sobrenatural e o sentimento religioso, que foi se refinando com o tempo, em um processo que passou pelos heróis gregos e pelos gênios latinos, “até o triunfo final do cristianismo” (F. de Coulanges). Se hoje se concede um destino digno aos defuntos e a expedição de certidão de óbito não é por acaso, mas porque o direito assim obriga, e o faz em consideração aos ditames da história da civilização, não por sentimentos variáveis e caprichos individuais.
Jornal de Brasília