Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
O tenente inglês John Shillibeer esteve no Rio de Janeiro em 1814. Sua estadia foi curta, de apenas nove dias, mas suficiente para que se deparasse com a realidade da escravatura, que acoimou de “inumana e bárbara”, de “proporções difíceis de imaginar”. Ele viu com os próprios olhos aquilo que hoje só conhecemos por relatos de terceiros ou ilustrações: negros engajados nos piores serviços, que ninguém mais suportava fazer. O mais penoso de todos talvez fosse o dos “tigres”, que conduziam tinas com excrementos a serem desprezados em terrenos baldios, em rios ou no mar. Ou então na rua mesmo, eventualmente sujando de “águas servidas” algum transeunte. Havia determinações no sentido de que o descarte na rua só poderia se dar à noite, apregoando-se, por três vezes, a fórmula “água vai!”.
Não havia sistema de esgoto no Brasil. Aliás, neste exato momento, na quadra onde moro, situada em bairro nobre da capital do país, o sistema em funcionamento é o de fossa sanitária.
Pois bem. Esse tal Shillibeer escreveu, a propósito da escravidão, que temia que “nada seja feito, a não ser que os estados humanitários europeus transformem suas recomendações em ordens e façam cumprir a lei pela força”. De fato, houve forte pressão e intervenção física de um estado europeu em especial -- seu país de origem. Shillibeer cá esteve no período compreendido entre 1807, com a abolição do tráfico nas colônias britânicas, e 1826, quando da renegociação do tratado comercial que privilegiava Londres em razão da escolta da família real portuguesa (de quebra, dourava a pílula do Embargo napoleônico) e do reconhecimento da nossa independência. O Brasil se comprometeu a abolir o tráfico e aprovou lei nesse sentido, em 1831. A lei era de araque, “para inglês ver”. Essa história ainda duraria décadas.
Jornal de Brasília - 19/12/2016
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