Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - Alterações ilegais na Lei Maria da Penha

MPDFT

Menu
<
Thiago Pierobom
Promotor de Justiça do MPDFT
 
Lourdes Bandeira
Professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília
 

Durante o mês de agosto, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia aprovou uma resolução que determinou a alteração do nome dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher daquele Estado para nominá-los como 'Varas da Justiça pela Paz em Casa'. A mudança se inspira na campanha homônima promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem tido o inegável mérito de promover a sensibilização de magistrados em todo o país para a gravidade do tema da violência doméstica, fortalecendo a relevância da temática dentro do Judiciário.

 Em que pesem os méritos da campanha, a alteração de nomenclatura configura um grave retrocesso no luta pelos direitos das mulheres. Primeiramente, a alteração é ilegal, pois desconsidera o disposto expressamente no art. 14 da Lei Maria da Penha, que determina que o nome da vara especializada deva ser 'Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher'.

A mudança de nomenclatura substitui 'mulher' por 'casa' e 'violência' por 'paz'. Imagina-se que tal alteração seja justificada pela proposta de focar não nos problemas da mulher, mas na resolutividade das soluções (a promoção da paz) e na perspectiva de que, protegendo-se a mulher, os demais integrantes do núcleo familiar seriam protegidos, evitando-se a violência transgeracional.

Todavia, a mudança altera o foco da lei, que é proteger a mulher da violência doméstica, e reforça a invisibilização histórica da mulher, diluindo-a na proteção à família. A mulher deixa de ser o objetivo central, que passa a ser a unidade da família, ainda que mergulhada na truculência sexista. Durante muito tempo, houve uma cegueira das instituições públicas e da sociedade para a brutalidade do que se pratica contra as mulheres dentro de casa.

A Lei Maria da Penha visa dar reconhecimento a essa violação sistemática de direitos: não se trata de conflito ou 'briga de marido e mulher'. É essencial dar nome à violência para conferir a ela visibilidade política e jurídica. Finalmente, o foco na 'paz na casa' pode induzir profissionais que ainda não incorporaram a perspectiva de gênero a desenvolver práticas de conciliação e de relativização da relevância da intervenção penal, que deve ser associada a intervenções de proteção à mulher efetivamente pautadas no acúmulo de pesquisas científicas das últimas décadas.

A nomenclatura atual é fruto de intensa atividade de mobilização do movimento feminista e de mulheres no Brasil e foi precedida por inúmeras audiências públicas antes da edição da Lei Maria da Penha. A alteração unilateral da nomenclatura pelo Poder Judiciário baiano, sem qualquer diálogo com o movimento feminista e de mulheres e demais instituições do sistema de Justiça, representa uma profunda desconsideração da luta histórica pelo reconhecimento da centralidade da mulher no enfrentamento à violência doméstica e pela promoção da visibilidade desta violência de gênero.

Essa proposta ocorre em um momento de graves desestabilizações à Lei Maria da Penha. O CNJ tem incentivado realização de experiências de Justiça Restaurativa em contexto de violência contra a mulher, o que, sem a adequada perspectiva de gênero, pode configurar uma estratégia de fomento a conciliações, com a finalidade de promover o arquivamento de processos criminais em nome da unidade do lar. Tramita no Congresso Nacional o PLC 07/2016, que confere poderes jurisdicionais aos Delegados de Polícia para decidirem medidas protetivas de urgência, uma proposta aparentemente sedutora, mas inconstitucional e que enfraquecerá a lei, a qual atualmente conta com a posição contrária do consórcio de ONGs que editaram a lei e da própria Maria da Penha Fernandes. A Lei n. 13.431/2017, recentemente aprovada, prevê que os crimes praticados contra crianças e adolescentes (meninos e meninas, com ou sem violência doméstica) deverão ser julgados nos Juizados de Violência Doméstica contra a Mulher, o que significa que a mulher perderá a prioridade de atendimento em seu próprio juízo especializado. Os princípios da Lei Maria da Penha estão sob ataque constante.

Por estas considerações, espera-se que as autoridades baianas revertam a alteração ilegal de nomenclatura e também que o Judiciário dos demais Estados não repita idêntico equívoco.

Correio Braziliense - 30/10/2017

O MPDFT informa que todos os textos disponibilizados nesse espaço são autorais e foram publicados em jornais e revistas. Eles são a livre manifestação de pensamento de seus autores e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Instituição.

.: voltar :.