Inácio Filho
Promotor de Justiça do MPDFT
Em seu livro “Uma Vida com Propósitos”, o autor Rick Warren vale-se de Efésios 1,11 para ensinar que “é em Cristo que descobrimos quem somos e o propósito de nossa vida. Muito antes de termos ouvido falar de Deus, Ele já tinha seus olhos sobre nós, já havia planejado para nós uma vida gloriosa”. Domingo passado, 3 de dezembro, meu saudoso pai, Inácio Pereira Neves, partiu para a eternidade e foi morar com Deus. Seu legado, entretanto, não só permanece vivo, como dará bons frutos àqueles que tiveram a oportunidade de conhecê-lo, desfrutar de sua amizade, aprender com seus ensinamentos.
É inconteste que a vida terrena do meu pai primou-se por vários propósitos, todos eles concatenados num propósito muito maior e cósmico, consistente no verdadeiro, sólido e inarredável compromisso com Deus. Gloriosa, essa, sim, é a definição, por excelência, da vida construída por ele no plano terrestre. Ora, uma vida gloriosa, verdadeiramente reclama uma passagem com intensidade de luz que consiga iniciar, percorrer e concluir a trajetória com a serenidade própria de seres divinos. Meu pai concluiu essa travessia com maestria, magnanimidade e majestade. Como seu melhor amigo que fui, pude experienciar parte dessa sublimidade e tenho o dever de compartilhar esse aprendizado com a coletividade. O desiderato não é outro senão permitir que a grandeza da fé do meu velho pai possa alcançar mais e mais pessoas, tão sedentas de lenitivo para suas almas. Ainda jovem e tendo se mudado da fazenda para a cidade de Crixás-GO, meu pai se casou, teve duas filhas, mas ficou viúvo. Mãe e filho não resistiram ao terceiro parto. Com firme propósito, dedicou-se a escolher a mulher com quem seguiria seu projeto de constituição de família. Recebeu o sim de Eclair, moça da roça, filha de José Maciel, uma espécie de São José de Crixás, tamanha era a sensatez, sabedoria e capacidade do sogro em compreender as revelações divinas. Nesse propósito de vida gloriosa, foram meus pais agraciados com 6 filhos, formando assim uma linda família de 8 filhos, tendo a graça divina permitido que eu figurasse como “bendito fruto”. “Vai chamar Inácio Pereira Neves Filho, e vai ser advogado”, profetizou o pai carinhoso, à época escrivão e secretário do juiz de direito de Crixás. Alguns tios, abusando da comicidade, apelidaram-me “vogado”, expressão que perdurou por algum tempo, já que o predito, aos poucos, se realizava. De fato, aos 12 anos de idade, fui nomeado informalmente auxiliar de escrevente do cartório de família, órfãos, sucessões, menores e 1º cível, da comarca de Crixás. Minhas atribuiççoes iam desde a limpeza do chão, registro de sentenças em livro próprio, atendimento ao público, até a datilografia de extensos formais de partilha. No cartório permaneci por cinco anos, até me mudar para Goiânia onde, na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Goiás, concretizou-se, de vez, a profecia da nascença. Ocorre que, novos contornos ao sapiente vaticínio do carinhoso pai, fez que o filho advogado convergisse para as entranhas do Ministério Público, primeiro, como Promotor de Justiça do Tocantins e, posteriormente, no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, órgão que atualmente tenho a honra de integrar. Na relação com a minha mãe, dispensável, porque salta à vista, é o louvor ao esposo. Jamais alguém presenciou descortesia do meu pai em relação a ela, que sempre foi tratada com muito carinho, respeito e admiração, valorizando-a como mulher, esposa, mãe, professora e dona de casa. Na criação dos filhos, o propósito glorioso teve regular sequência. Primeiro, ao fazer, com sabedoria ímpar, com que as duas filhas do primeiro casamento, com três e um ano de idade, respectivamente, aos poucos, fossem se integrando à nova família, cujas infantes passaram a chamar de mãe a madrasta Eclair. Rotineiramente, pai e mãe reuniam-se com os oito para tratar de eventuais dificuldades de relacionamento e sugerir as mudanças de comportamento necessárias; tudo num clima bastante afável, amistoso e conciliador, e sempre precedido de uma oração. Nesse particular, o propósito incluía missa e catequese aos domingos, que se completavam com a oração do terço, este sim, indispensável quando das viagens de carro. No campo do ensino, diário era o acompanhamento das tarefas de escola por minha mãe, competindo ao meu pai, compromissado que era, dar o respaldo necessário para um aprendizado de qualidade, mesmo considerando tratar-se de escola pública. Igual propósito glorioso adotou meu estimado pai quanto ao trabalho dos filhos, em especial à minha pessoa, cuja labuta diária na adolescência incluía lavar banheiros da casa, lavar o carro, capinar o enorme quintal, vender geladinho na rua; labores tais que tinham caráter muito mais pedagógico que propriamente por necessidade financeira. Além de serventuário da justiça e fazendeiro, meu honrado pai, imbuído de espírito altruísta, abraçou diversas causas religiosas e filantrópicas em sua cidade. Padres e freiras, vindos do Rio Grande do Sul no início da década de 70 com a missão de evangelizar a região, foram bem acolhidos em sua residência que tornou-se uma extensão da casa paroquial. Nesse trabalho missionário, foi meu pai um dos fundadores da Sociedade de São Vicente de Paulo. Os “vicentinos”, como são conhecidos, são um movimento católico de leigos que se dedicam, sob o influxo da justiça e da caridade, à realização de iniciativas destinadas a aliviar o sofrimento do próximo, em particular dos social e economicamente mais desfavorecidos, mediante o trabalho coordenado de seus membros. O coral da igreja, o apostolado da oração, o terço dos homens e o conselho da igreja, são apenas alguns exemplos de movimentos religiosos que contaram com a efetiva participação do católico praticante Inácio Pereira Neves. Em 1983, juntamente com outros crixaenses, meu pai fundou o Lions Clube de Crixás, tendo sido o primeiro presidente daquele clube de serviço. Quem conhece o Lions de Crixás é testemunha do importante trabalho social que a entidade desenvolve na cidade. Na década de 70, quando Crixás não possuía sequer energia elétrica e asfalto ligando à Goiânia, meu pai teve a iniciativa de fundar o Sindicato Rural de Fazendeiros. Para tanto, teve que abraçar uma grande campanha para sensibilizar os fazendeiros quanto à importância da criação do Sindicato e da necessidade da filiação de um número mínimo de fazendeiros para se conseguir a Carta Patente junto aos órgãos federais em Brasília, onde esteve por diversas vezes. Escolhido Presidente, construiu sede própria para a entidade contemplando salas para consultório médico e odontológico para atendimento aos fazendeiros e suas famílias. No dia 3 de julho de 2017, a Câmara de Vereadores de Goiânia homenageou o fazendeiro Inácio Neves pelo reconhecimento por sua contribuição e desenvolvimento da agricultura e pecuária do município de Crixás. Embora tenha participado ativamente dos processos eleitorais do município, meu pai jamais disputou qualquer cargo eletivo ou aceitou ocupar cargo comissionado na administração pública. Ainda assim, exerceu papel relevante nos vários movimentos que buscavam melhorias para a região, como quando da emancipação do município, em 1953, da criação da comarca, em 1954, da luta vitoriosa contra a mudança da sede do município para Nova Crixás, na criação e instalação do banco cooperativo de crédito – Sicoob e na fundação da APAE. Ao longo de sua vida, como exemplar amigo, soube meu pai cultivar sólidas e verdadeiras amizades, independentemente da classe econômica ou social. Sua casa sempre foi parada obrigatória de pessoas humildes, como varredores de rua e deficientes mentais e visuais, onde eram acolhidos com carinho e atenção especial. Tais pessoas eram presença constante no “pouso de folia” concedido todos os anos em sua residência por ocasião da festa do Divino Espírito Santo. Idêntico tratamento sempre tiveram seus vaqueiros, peões e empregadas da residência, cujos trabalhadores tornaram-se pessoas da família, além de compadres e comadres. Sempre preocupado em preservar a família e como bom vizinho, não aguardava ser convocado para solucionar pequenos conflitos da vizinhança, ou entre casais de amigos. Com a autoridade moral que lhe era peculiar, agia sempre com prudência, sensatez e sensibilidade, cuja força buscava na constante oração. Em 2014, meu pai ajudou a fundar e tornou-se imortal da Academia Crixaense de Letras. Destacava-se ele como um dos poucos crixaenses vivos que conhecia, com riqueza de detalhes, a árvore genealógica dos ancestrais de Crixás e a história político-administrativa do município. Enquanto registrava seus escritos, foi acometido de grave doença que o impediu de publicar em vida o que plantou, ensinou e colheu. A família, certamente, dará forma e publicação de sua relevante contribuição literária. Dentre seus atos de grandeza destaca-se, ainda, o reconhecimento voluntário de um filho havido no período em que se encontrava viúvo, cujo ato, além de conferir foros de legalidade e justiça, permitiu que pai e filho restabelecessem a necessária paz interior. Diante de uma vida tão honrada, exemplar e gloriosa, não pude me silenciar por ocasião da despedida e sepultamento de meu pai em Crixás, por onde passaram mais de mil pessoas no último domingo. Mesmo na dor, a ocasião urgia conclamar aos presentes à uma profissão de fé, afinal, a humanidade vive tempos terrivelmente sombrios, com flagrante ruína do Estado e descalabro da entidade família. Rick Warren andou bem ao ‘escrever’ o best-seller “uma vida com propósitos”. De fato, a reflexão do renomado escritor estadunidense pode levar o leitor a descobrir se está vivendo de acordo com o propósito de sua vida. Inácio Pereira Neves, ao “’viver’ uma vida com propósitos”, andou muito bem, tendo, de fato, deixado a seus familiares e amigos um rico legado. Sua generosa contribuição pode ser a força motriz a nos permitir voo altaneiro em busca de dias melhores para o nosso povo, nosso país e para o mundo. Na grandeza da fé do meu amado e inesquecível pai é que está a inspiração para essa nova vida com propósitos. A exortação é como o brado proferido por Júlio César, aos 10 de janeiro de 49 a.C, às margens do Rubicão: alea jacta est.
Diário da Manhã - 9/12/2017
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