Em fevereiro de 2004, o Brasil deu um expressivo salto em direção ao efetivo combate à lavagem de dinheiro, à sonegação fiscal e ao crime organizado. Foi assinada pelo Presidente Lula medida provisória que proibia o funcionamento dos bingos e caça-níquéis. Segundo o então Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, efeitos da MP se sobreporiam a todas as leis estaduais que tratavam do funcionamento dessas casas, inclusive sobre eventuais pedidos de liminares impetrados na Justiça por empresários do setor.
Reconheceu-se, naquele momento, o caráter nocivo da atividade, que representa uma das bases de sustentação do crime organizado, uma vez que casas de bingos, conforme é sabido, são instrumentos eficientes para a lavagem de ativos financeiros ao oferecerem origem ao montante de proveniência ilícita a ser declarado. Além disso, permitem a multiplicação dos ganhos e o escoamento, de difícil detecção pelo Fisco, de valores não-contabilizados. Não bastasse, representam forma efetiva de cooptação e corrupção de servidores públicos em todos os níveis.
Evidentemente, a MP interferiu nos interesses daqueles que se beneficiavam das facilidades de incorporação dos ativos “lavados” ao sistema econômico. Teve início assim intenso lobby no sentido de derrubar a proibição instituída. Entre idas e vindas, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados projeto de lei a favor da legalização dos bingos em todo o país. Curiosamente, o texto do projeto original, de autoria de Antônio Carlos Mendes Thame, previa a proibição do jogo. Segundo o parlamentar, “bingo é vício, é doença, uma vergonha nacional. (...). Se essa lei for sancionada, aparecerei como autor desse vexame”.
Alega-se que a regulamentação da atividade significaria a geração de milhares de empregos e considerável aumento na arrecadação de tributos. Nessa linha de pensamento, razoável seria admitir que a legalização do comércio de drogas ilícitas ou do tráfico de seres humanos também seria útil ao país, uma vez que geram valores expressivos. Olvida-se que, no passado recente, enquanto os bingos funcionavam, milhares de ações trabalhistas foram ajuizadas contra os donos de casas do setor diante das constantes violações aos direitos dos trabalhadores. O próprio Ministério Público do Trabalho foi incisivo em combater a intermediação irregular para contratação de mão-de-obra por cooperativas fraudulentas. O mesmo se diga em relação ao argumento utilitário do incremento da arrecadação tributária pelos bingos, que costumeiramente fraudam o sistema. Foi o que concluiu a Polícia Federal, por meio do Inquérito nº 015/2001, integrante do Relatório da CPI dos BINGOS, que levantou as seguintes irregularidades fiscais envolvendo essas casas de jogos: “resultados operacionais não declarados”; “falta de recolhimento do IRF sobre prêmios e sorteios em geral”, “diferença apurada entre o valor escriturado e o declarado pago”; e “falta de recolhimento da CSLL”.
Por derradeiro, destaque-se o problema de saúde pública hoje já enfrentado, em especial, no que diz respeito à patologia classificada e reconhecida como transtorno psiquiátrico, decorrente da compulsão pela jogatina (classificação do DSM.III). Trata-se do chamado Jogo Patológico, que tem levado famílias à desagregação e à miséria, pelo desregramento de pais que lançam mão de seus salários em proveito do jogo.
O Estado, doutrinariamente composto pelo povo, território e governo, tem como fim o bem comum. A República Federativa do Brasil tem como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. Nesta ótica, não convém, rectius, não pode o poder político sujeitar o povo à ação de traficantes de armas, de pessoas e de drogas, bem como de tantos outros tipos de criminosos travestidos de donos de casas de jogos. A legalização do jogo no país, ao contrário de gerar novos empregos e incrementar a arrecadação tributária, definitivamente legalizará a ação da máfia do jogo no Brasil. Basta atentar-se para o que dispõe o relatório da CPI dos Bingos.
Gercino Gerson Gomes Neto
Presidente do Grupo Nacional de Combate
às Organizações Criminosas (GNCOC)
Leonardo Azeredo Bandarra
Presidente do Conselho Nacional
de Procuradores-Gerais (CNPG)