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60 anos do MPDFT em Brasília - foto antiga da inauguração da primeira sede do MPDFT em Brasília e logo comemorativa de 60 anos

Para lembrar os 60 anos do MPDFT em Brasília, serão republicadas, até o fim de abril, matérias históricas sobre o trabalho da instituição. A série estreia com a reportagem da Revista MPDFT Memória nº 2, de 2009, sobre um dos crimes de maior repercussão na história do Distrito Federal.

Quem matou Ana Lídia?

Várias versões para um crime que chocou o Distrito Federal

Ana Lídia BragaApesar da impunidade, não há nada que faça o brasiliense esquecer a barbárie cometida contra a menina Ana Lídia, assassinada em 1973, quando tinha apenas sete anos de idade. A crueldade do crime, o possível envolvimento do irmão no sequestro, as suspeitas sobre filhos de políticos e as falhas na investigação são os ingredientes de uma história que ainda provoca insatisfação e frustração. Ninguém jamais foi punido.

Na época, a hipótese de que não havia interesse em investigar o caso foi tema de debate na imprensa. A situação piorou quando os suspeitos levados a julgamento foram absolvidos e a possível relação do crime com o tráfico de drogas não foi provada.

A história teve início em uma terça-feira, 11 de setembro de 1973. Eloyza Rossi Braga deixou sua filha, uma menina loira, com cabelos até os ombros e de olhos azuis, na porta do Colégio Madre Carmem Salles, na 604 Norte, por volta das 13h50. Ela estaria acompanhada do marido Álvaro Braga e do filho Álvaro Henrique Braga, em uma Vemaguete cinza-claro. Foi a última vez que viram a filha com vida.

No trajeto da escola para o trabalho, os pais de Álvaro teriam-no deixado na Rodoviária do Plano Piloto. Os dois eram funcionários públicos, com cargos de chefia no então Departamento de Serviço de Pessoal, o Dasp. A menina cursava a primeira série no período da manhã, mas desde agosto frequentava a escola no período da tarde para aulas de reforço e de piano. Ficava na escola das 14h às 16h30. Naquele dia, Ana Lídia usava vestido xadrez azul e branco e sandálias vermelhas. Carregava uma pasta preta na qual guardava o material escolar: quatro cadernos encapados com plástico amarelo, uma caixa de lápis de cor e uma boneca.

Ninguém notou a falta da menina, exceto o jardineiro da escola Benedito Duarte da Cunha, 31 anos, que viu quando a menina chegou com a mãe e também quando saiu pelo portão lateral, acompanhando um rapaz magro, pele clara, cabelos loiros, com um livro vermelho na mão. Ele estava vestido com uma camiseta branca e calça esverdeada. Benedito, uma das poucas testemunhas do desaparecimento da menina, afirma em seus depoimentos que quem tirou Ana Lídia da escola já se encontrava no local quando a menina chegou.

Benedito garante que o rapaz estava sentado em um banco no pátio da escola, com um livro na mão. Ele também diz que na Vemaguete estavam apenas o pai, a mãe e a menina. As afirmações são sustentadas em todos os seus depoimentos.

Os fatos

Por volta das 16h daquela terça-feira, Álvaro Braga foi informado de que sua mulher o havia procurado e que parecia bastante nervosa. Soube então que a pequena Ana Lídia não tinha assistido à aula.

Os pais, com a ajuda do filho e da namorada dele, começaram as buscas nos arredores da escola e nos descampados da Universidade de Brasília (UnB). Sem resultado. Às 17h, informaram a polícia sobre o desaparecimento da menina.

Às 19h45, o delegado-chefe da 2ª Delegacia de Polícia, José Ribamar Morais, recebeu um telefonema. Era um pedido de resgate de 2 milhões de cruzeiros. Ana Lídia foi colocada ao telefone, chorou e chamou pela mãe.

Por volta das 20h, um fuzileiro do Grupamento de Fuzileiros Navais, na Vila Planalto, encontrou em frente ao quartel o estojo de lápis. O funcionário de um supermercado também encontrou, nessa mesma noite, sobre uma pilha de sacos de arroz, uma carta endereçada a Álvaro Braga. No texto, o sequestrador exigia 500 mil cruzeiros para entregar Ana Lídia. O dinheiro deveria ser colocado próximo à Ponte do Bragueto até a sexta-feira, dia 14.

A polícia encontrou os cadernos da menina jogados à margem da pista que passa pelo Grupamento de Fuzileiros Navais. Às 12h do dia seguinte, no cerrado próximo ao Centro Olímpico da UnB, três policiais descobriram o corpo de Ana Lídia, que havia sido enterrado em uma cova rasa. No local, havia mechas de cabelos da menina e marcas de botas.

O corpo estava de bruços, nu e com a face comprimida contra o chão. Uma vara de madeira, arrancada de uma árvore próxima, foi usada para jogar a terra sobre o cadáver. O local era praticamente deserto.

Antes de ser morta, segundo o laudo, Ana Lídia foi torturada. Seus cabelos foram cortados de forma irregular, rente ao couro cabeludo. Os cílios foram arrancados, havia escoriações e manchas roxas por todo o corpo. O laudo do exame cadavérico constatou que ela foi estuprada depois de morta. Duas camisinhas usadas e um pedaço de papel higiênico com esperma estavam no local. Laudos do Instituto de Medicina Legal (IML) e do Instituto de Criminalística comprovariam, mais tarde, que o esperma era de uma única pessoa.

Ana Lídia foi morta entre 4h e 6h da manhã do dia 12, por asfixia. Passou 17 horas com o assassino. A boneca Susi foi encontrada depois, mas a mochila e as roupas nunca apareceram.

A investigação policial

No início das investigações, a polícia apontou Álvaro Henrique, irmão de 18 anos e padrinho de Ana Lídia, como o principal suspeito de ter buscado a menina na escola. Pesavam sobre ele acusações de envolvimento com drogas e a suspeita de que teria dívidas com traficantes. Em depoimento, ele confessou ter consumido maconha apenas três vezes e revelou que pedira dinheiro emprestado ao pai e a amigos para pagar o aborto da namorada, que estava grávida.

O jardineiro Benedito sustentou em seus depoimentos que Álvaro era o rapaz que havia retirado a menina da escola. O álibi apresentado pelo acusado, de que estaria com os pais e, por isso, não teria tempo para retirar a irmã do colégio no horário visto pelo jardineiro, não se sustentava. Há relatos no processo de que a menina era tímida e não sairia da escola com um estranho.

Para a polícia, Álvaro não agiu sozinho. Ele tinha um parceiro: Raimundo Lacerda Duque tinha 30 anos e trabalhava no mesmo local que a Eloyza Braga. Era viciado em drogas e confessou à polícia ser pedófilo. Em seu depoimento, garantiu que apenas soube do desaparecimento de Ana Lídia pelo rádio. Duque passou cinco meses foragido depois de saber que era procurado pelo assassinato da menina.

Além de Álvaro e Duque, as suspeitas também recaíam sobre Alfredo Buzaid Júnior, filho do então ministro da Justiça, e sobre o filho do senador Eurico Rezende, Eduardo Ribeiro de Rezende. Buzaid Jr. morreu em 1975 em um acidente automobilístico, depois de ter ficado escondido por dois anos. Rezendinho, que, em novembro de 1974, foi preso por porte e uso de drogas, negou que estivesse em Brasília na época. Ele se suicidou em 1990, aos 40 anos.

A conclusão do Ministério Público

Desembargador José JeronymoO hoje desembargador aposentado José Jeronymo Bezerra de Souza foi quem, aos 37 anos, com apenas um ano de carreira no Ministério Público, investigou o assassinato de Ana Lídia. Foi designado pelo então procurador-geral Guimarães Lima. Foi, provavelmente, a primeira vez que o Ministério Público conduziu um inquérito, o que coloca o MPDFT como pioneiro (essa prerrogativa só seria reconhecida com a Constituição de 1988).

A linha de investigação foi definida em três frentes, levando em consideração: se filhos de autoridades participaram do crime; se haveria o envolvimento de traficantes de drogas no assassinato; e se a família e os amigos seriam investigados.

José Jeronymo conta que o contato com a Polícia Civil do Distrito Federal foi estreito, mas a situação não era boa. A polícia, segundo ele, estava paralisada. Ele garantiu, então, que a investigação correria sob sigilo. Mesmo assim, os policiais afirmavam que nada tinham contra os suspeitos e que não havia qualquer indício de envolvimento deles no assassinato de Ana Lídia.

O desembargador lembra que não encontrou nada que pudesse incriminar Buzaid ou Rezendinho. Partiu, então, para uma nova linha de investigação: o tráfico de drogas. Para ajudá-lo, o promotor de Justiça José Jeronymo buscou ajuda na Polícia Federal. A resposta foi a mesma da Polícia Civil do Distrito Federal: não havia elementos para provar que o crime estivesse ligado a traficantes.

José Jeronymo não teve alternativa senão passar a investigar os familiares de Ana Lídia. Ele lembra que o irmão da menina, Álvaro Henrique, durante toda a investigação, foi frio e distante. O desembargador não tem dúvidas de que ele retirou a menina da escola e a entregou a Duque. Ele acredita que Álvaro não participou da barbárie contra a irmã, mas foi co-partícipe. A conclusão, segundo Jeronymo, ficou clara em função do comportamento da família, que “nunca quis colaborar com as investigações”. Ele lembra que o pai de Ana Lídia, Álvaro Braga, mostrava-se irritado com as suspeitas sobre o filho.

“O senhor, como pai de família, tomou uma difícil decisão. O senhor perdeu uma filha em circunstâncias trágicas e quer salvar o outro filho. O senhor não quer colaborar com a investigação porque sabe que seu filho participou desse crime. Ele não matou a irmã, mas é coautor porque tirou a menina do colégio e a entregou para esse celerado, esse Raimundo Lacerda Duque”, afirmou José Jeronymo no último depoimento de Álvaro ao Ministério Público. A resposta, segundo o desembargador, foi o silêncio.

O julgamento

Os acusados foram denunciados e processados. Mas, apesar da convicção da Promotoria, foram absolvidos na primeira instância. O Ministério Público recorreu e o caso foi decidido na segunda instância.

O desembargador Eduardo Ribeiro, que relatou o processo, teve dúvidas quanto ao ponto fundamental do crime - se teve o propósito de extorsão ou intuitos sexuais. O relator considera a primeira hipótese incompreensível, uma vez que os pais da vítima não poderiam reunir rapidamente tanto dinheiro. Ele sugere que a carta e o telefonema foram vagos e não possibilitavam aos pais de Ana Lídia, ainda que dispusessem dos recursos necessários, atender à exigência. E mais, que não se podia ter certeza de que a carta fosse dos verdadeiros sequestradores. Mas não há dúvida de que houve violência sexual.

O desembargador Bueno de Souza, em seu voto, ressaltou que as investigações policias tinham graves deficiências. Questionou o fato de a polícia ter tido conhecimento do homicídio no mesmo dia em que aconteceu, mas o inquérito só ter sido aberto uma semana depois, tempo suficiente para Duque viajar para Goiânia.

Também não entendeu por que as freiras do colégio só foram ouvidas a partir de abril de 1974, mais de um ano depois de a menina ter desaparecido de dentro da escola. Mais ainda, por que a polícia nunca investigou os crimes confessados por Duque. Ele relatou a prática de dois assaltos e de um homicídio. A vítima foi a menina Rosângela Márcia de Almeida, filha de Enedina, namorada de Duque. Ele também confessou diversos atentados sexuais contra crianças e tráfico de entorpecentes.

Bueno de Souza formou opinião oposta à do relator. Ele discordou, inclusive, do voto do relator quando este sustentou que Ana Lídia foi violentada sexualmente depois de morta. De acordo com o laudo, “quanto às lesões vulvovaginais e retais, não resta dúvida que foram praticadas por pênis e depois da criança morta”. Mas, segundo ele, isso não exclui a prática do atentado violento ao pudor enquanto Ana Lídia ainda estava viva. Nesse ponto, lembrou ainda que Duque havia confirmado seu comportamento pedófilo.

O terceiro desembargador, Duarte de Azevedo, acompanhou o voto do relator. Portanto, com um voto favorável ao Ministério Público e dois contrários, foi mantida a absolvição dos réus.

Uma nova investigação

O delegado aposentado Álvaro Caetano dos Santos revelou que não gosta de relembrar este caso. O motivo: nunca foi solucionado. Ele foi designado para presidir uma comissão e tentar encontrar o verdadeiro culpado (ou culpados) da morte de Ana Lídia. Onze anos já haviam passado desde o crime e, por determinação do Governo do Distrito Federal, o caso foi reaberto. De acordo com o delegado, todas as possíveis variáveis foram investigadas, mas, mais uma vez, nada foi provado.

Álvaro Caetano lembra que foram feitas mais de 40 viagens e que a comissão ouviu o depoimento de mais de 80 pessoas, inclusive dos proprietários da boate Shalako, muito frequentada à época pela juventude de Brasília. Os donos foram presos suspeitos de ter assassinado o próprio pai, no interior de Minas Gerais. Foram ouvidas prostitutas e detentos que afirmavam ter conhecido Duque e dele ouvido muitas coisas. No entanto, não se chegou a qualquer conclusão.

Ainda sem resposta

Depoimento dos investigados pelo crimeO fato é que o Ministério Público ofereceu a denúncia e a Justiça tomou a sua decisão: as provas eram insuficientes e Álvaro Henrique Braga e Raimundo Lacerda Duque foram inocentados. Em 11 de setembro de 1993, o crime cometido contra Ana Lídia prescreveu e, mesmo que o assassino se apresente hoje, não poderá mais ser preso.

Álvaro Henrique é médico angiologista no Rio de Janeiro. Raimundo Duque morreu em 2005, em Anápolis (GO), aos 62 anos, de complicações decorrentes do alcoolismo. A mãe de Ana Lídia, que sempre afirmou não acreditar no envolvimento do filho, morreu em 2006. O pai, Álvaro Braga, vive no interior do Estado do Rio de Janeiro e recusa-se a falar sobre o caso.

A outra filha do casal, Christina, que também vive no Rio de Janeiro, em rápidas palavras ao telefone, sustentou que a família sempre acreditou na inocência do irmão e que os Braga saíram do episódio duplamente vítimas. Perderam a pequena Ana Lídia e tiveram a vida devastada com a acusação que pesou sobre seu irmão. Questionada sobre se haveria um suspeito, Christina disse que “o crime poderia ter sido cometido por um bandido ‘comum’, tese que jamais foi investigada pelo Ministério Público”.

O crime ocorrido na década de 1970 ainda hoje é comentado. Ana Lídia foi enterrada no Cemitério Campo da Esperança em 13 de setembro de 1973 e até hoje seu túmulo atrai visitantes, que levam flores, presentes, acendem velas e deixam placas de agradecimento por graças alcançadas. Muitos acreditam que a garota de rosto angelical faz milagres. Vinte anos após a sua morte, o parquinho do Parque da Cidade ganhou o seu nome. Quem apostava no esquecimento errou. Não há nada que faça Brasília esquecer Ana Lídia.

O texto acima foi republicado na íntegra, conforme sua primeira divulgação, em 2009, na Revista Memória nº 2. .Para ler essa e outras matérias sobre a história do MPDFT, clique e conheça a Revista Memória.

capa Revista Projeto Memoria n2

 

 

 

 

 

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