15 anos depois de criada a Lei Maria da Penha, desafio do sistema de justiça é compreender padrões de comportamento e circunstâncias que levam ao assassinato de mulheres
Pesquisa inédita conduzida por integrantes do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) identificou os principais fatores de risco para a ocorrência de feminicídios. Os resultados indicam que, em todos os casos estudados, houve episódios de violência prévia, física ou psicológica. Em pelo menos 80% das situações, seis ou mais fatores de risco estavam presentes. É a primeira vez que estudo desse tipo é realizado no Brasil.
Para esse trabalho, foram analisados os 34 feminicídios ocorridos no Distrito Federal em 2016 e 2017 no contexto de violência doméstica e familiar. Os pesquisadores estudaram prontuários médicos e processos judiciais anteriores envolvendo agressores e vítimas. Familiares das mulheres mortas também foram entrevistados.
A principal conclusão do estudo é que a avaliação de risco nos casos de violência doméstica é fundamental para evitar a ocorrência de feminicídios. Segundo os pesquisadores, “a compreensão e estimativa de risco de ocorrência de feminicídio em um caso concreto envolve a identificação de padrões de comportamento, características e circunstâncias que anunciam o perigo. Não existe um único perfil do autor de feminicídio no âmbito da violência doméstica. Contudo, existem características individuais do autor e da vítima que, associadas a elementos situacionais, aumentam o risco de um feminicídio”.
O promotor de Justiça Thiago Pierobom é um dos autores e explica que a pesquisa tem potencial de auxiliar na melhoria das políticas públicas e dos serviços oferecidos às mulheres em situação de violência doméstica. “O estudo permitiu a reconstrução dos casos de forma a compreender padrões de comportamento e circunstâncias associados aos feminicídios no Distrito Federal ao longo da trajetória de relacionamentos abusivos”, afirmou.
Números
Foram avaliados 23 fatores de risco. Desses, o mais presente é o ciúme excessivo, reportado em 88,2% dos casos. Histórico de ameaça ou tentativa de matar (73,5%) e histórico criminal do agressor (64,7%) aparecem a seguir. Na média, em cada feminicídio estudado, havia 9,62 fatores de risco e, em 80% das situações, pelo menos 6. Em todos, pelo menos 3 estavam presentes. Agressões físicas leves, separação efetiva ou iminente e ameaça de matar ocorreram em pelo menos 60% dos casos.
Os aspectos socioeconômicos também são fatores de risco relevantes para a ocorrência de feminicídios. Tanto agressores quanto vítimas tendem a ter baixa escolaridade (a proporção dos que estudaram apenas até o ensino fundamental é de 61% e 41%, respectivamente). As mulheres tendiam a exercer atividades socialmente desvalorizadas (30% eram empregadas domésticas) e tinham renda média inferior à dos parceiros ou ex-parceiros. Em 14,7% dos casos, o agressor não tinha renda e, em 8,8%, passava por graves dificuldades financeiras. Além disso, em 20,6% das situações, havia algum conflito sobre partilha de bens ou questões patrimoniais.
Mulheres negras foram 77% das vítimas no estudo, o que indica a maior vulnerabilidade desse grupo. A condição socioeconômica das mulheres brancas era pior: a renda média era de meio salário-mínimo, contra 1,1 salário-mínimo para as mulheres negras. A maior renda de uma vítima branca foi de 1,5 salário-mínimo e, de uma vítima negra, 7,5. Essa diferença demonstra que, para mulheres negras, a cor se sobrepõe à situação econômica como fator de risco.
A pesquisa também evidenciou que, em quase metade dos casos (47%), a diferença de idade entre agressor e vítima era de dez anos ou mais. Esse dado também se relaciona com a renda dos envolvidos: nas situações em que o agressor era ao menos dez anos mais velho, a diferença de renda entre os dois chegava a cinco salários mínimos, em média. Nos casos em que a diferença de idade era menor, a disparidade de renda caía para 1,5 salário mínimo, em média.
O fim da relação é outro fator de risco significativo. Em 61,8% dos casos, as vítimas haviam se separado ou estavam tentando se separar; 26% já haviam sofrido ameaças para não deixar o agressor. Entre os casais que haviam se separado, o tempo médio entre o término do relacionamento e o feminicídio foi de 38 dias. O período mais longo foi de 150 dias e, no caso mais rápido, o crime ocorreu no mesmo dia do rompimento.
Contexto
Para o promotor de Justiça Thiago Pierobom, a pesquisa indica de forma clara que há sinais que antecedem os feminicídios e que, portanto, trata-se de um crime evitável. “Compreender o contexto dos feminicídios e o histórico relacional é essencial para que os sistemas de segurança e de justiça possam ser mais eficientes em evitar a ocorrência dessas mortes”, conclui.
Para saber mais
ÁVILA, Thiago Pierobom de; MEDEIROS, Marcela Novais; CHAGAS, Cátia Betânia; VIEIRA, Elaine Novaes. Fatores de risco de feminicídio no Distrito Federal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 180, p. 297-328, 2021. Disponível em: https://www.academia.edu/49252744
ÁVILA, Thiago Pierobom de; MEDEIROS, Marcela Novais; CHAGAS, Cátia Betânia; VIEIRA, Elaine Novaes; MAGALHÃES, Thais Quezado Soares; PASSETO, Andrea Simoni de Zappa. Políticas públicas de prevenção ao feminicídio e interseccionalidades. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 10, n. 2, p. 375-407, 2020. Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/6800
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