Órgão: Primeira Turma Criminal
Classe: HBC - Habeas Corpus
Num. Processo: 2011 00 2 011363-3
Impetrante: DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL
Paciente: J. R. B. S.
Relator: DESEMBARGADOR ROMÃO C. OLIVEIRA
Segredo de Justiça
EMENTA.
HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA VULNERÁVEL. PRODUÇÃO ANTECIPADA DA PROVA TESTEMUNHAL - POSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA.
A produção antecipada de provas, nos casos em que são tutelados os direitos da criança e do adolescente, visa a minimizar o efeito devastador de abusos sexuais, evitando-se a revitimização da criança, bem como a facilitar o deslinde de crime que quase em sua totalidade é cometido às escondidas.
Assim, presentes os requisitos de relevância e urgência estabelecidos no inc. I do art. 156 do Código de Processo Penal, autorizado está o deferimento da medida antecipatória.
Acórdão
Acordam os Desembargadores da Primeira Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios ROMÃO C. OLIVEIRA - Relator, MARIO MACHADO e GEORGE LOPES LEITE - Vogais, sob a presidência do primeiro, em ADMITIR E DENEGAR A ORDEM, À UNANIMIDADE, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 14 de julho de 2011.
Desembargador ROMÃO C. OLIVEIRA
Presidente e Relator
Relatório
Cuida-se de habeas corpus impetrado pela Doutora Arlete Luciana Zulian, na qualidade de Defensora Pública, em favor de J.R.B.S., também identificado nos autos.
Diz a impetrante que foram deferidas medidas protetivas de urgência em desfavor do paciente e outros, no interesse da menor G. S. N. e sua representante F.L.R.B. Também foi deferido o pleito ministerial de produção antecipada da prova, a fundamento de que a medida minimizaria ou afastaria eventuais danos secundários decorrentes da revitimização da criança em sucessivas e inadequadas inquirições.
Sustenta que, na espécie, a produção antecipada de provas não tem amparo legal, eis que somente em três hipóteses previstas no art. 225 do Código de Processo Penal é que se admite a medida.
Ao final, requer o deferimento de liminar para que seja determinado o cancelamento da audiência designada para o dia 21 de junho ou, sucessivametne, o desentranhamento do depoimento tomado.
O pedido de suspensão da audiência para a colheita antecipada de provas, formulado em sede de liminar, restou prejudicado, conforme decisão de fls. 30/31.
As informações vieram à fl. 34, acompanhadas de documentos.
O parecer da douta Procuradoria de Justiça é pela denegação da ordem.
É o relatório.
V O T O S
O Senhor Desembargador Romão C. Oliveira (Presidente e Relator) - Como já se destacou na decisão de fl. 31, o pedido de suspensão da audiência para a produção antecipada de provas restou prejudicado. Cinge-se, pois, o presente writ ao pleito de concessão da ordem para se determine o desentranhamento da prova produzida na audiência suso mencionada e que veio para os autos em cópias que são vistas às fls.55/63.
A douta Procuradoria de Justiça manifestou-se pela denegação da ordem, argumentando que a produção antecipada de provas, máxime nos casos em que são tutelados Direitos da Criança e do Adolescente, tem amparo constitucional e legal no sistema jurídico pátrio. Confira-se, a propósito, o teor do bem lançado parecer da lavra do Dr. Rogério Schietti Machado Cruz, ipsis verbis:
"O tema objeto deste writ convoca o intérprete e aplicador do Direito a refletir sobre as novas demandas da justiça penal pós-moderna, bem assim sobre o papel que os sujeitos processuais devem exercer na persecução penal pública atual.
A impetração objetiva obstruir iniciativa judicial que, devidamente amparada na legislação de regência, dá efetiva concretude ao comando constitucional que determina ao Estado conferir proteção prioritária à criança e ao adolescente, pondo-o a salvo contra todo tipo de violência, institucionalizada ou não, notadamente a violência de cunho sexual.
Insurge-se a defesa do paciente contra a afirmada urgência da produção antecipada do depoimento da impúbere ofendida por crimes de ação penal pública, de (sic) atentatórios à sua liberdade e à sua dignidade sexuais.
Estranhamente, a impetração parece alçar a patamares muito altos a ‘prova' colhida ‘com o auxílio do aparato da polícia civil por meio do inquérito policial', relegando a um valor secundário e contrário ao devido processo legal a oitiva judicial da vítima, pelo juiz natural da causa e na presença da defesa técnica e do órgão de fiscalização e de acusação penal, em ambiente próprio e com auxílio de profissionais capacitados e treinados para cumprir a tarefa do modo menos lesivo à formação moral e psíquica da criança/adolescente, sem descurar, por óbvio, da relevância probatória do depoimento colhido sob contraditório e amplitude de defesa.
Chega a impetrante a sustentar, enfaticamente, que a medida de produção antecipada da prova oral ‘invade atribuição própria da Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente (DPCA)' (o grifo é original), o que soa inusitado em face do verdadeiro destinatário da proteção do remédio heróico.
O pedido formulado pelo Ministério Público direcionou-se à tomada e ao registro do depoimento da criança G.S.N., perante o juiz natural da causa, de modo antecipado, com gravação em DVD, de modo a, minimizando os danos que a experiência revivida traz à formação psíquica da criança/adolescente, elidir (ou reduzir) ‘a necessidade de coleta de outro depoimento da mesma vítima sobre a mesma base fática'.
Ressalte-se, de plano, que o direito a produzir tal prova, por uma das partes, emerge como clara decorrência do próprio direito de ação (principalmente sob a ótica do titular do ius actionis), ou mesmo do direito de defesa (sob a ótica do acusado). Ora, se a lei atribui à parte o direito de provocar a jurisdição, tendo como causa petendi a alegada prática de um crime, há de assegurar-lhe o direito de produzir prova que venha ao encontro de suas alegações, desde que, por óbvio, a prova colhida sob o pálio do contraditório.
(...)
Sob outra angulação, dadas as características inerentes à infância e a juventude, é absolutamente natural e justificável que se pretenda colher o quanto antes os esclarecimentos sobre o fato criminoso, tanto para dar lastro (ou não) à persecução penal, quanto para, se for o caso, obviar os efeitos deletérios do tempo sobre a prova oral.
A base legal para o depoimento antecipado é o artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, que permite, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção da prova urgente e relevante, observada a sua necessidade, adequação e proporcionalidade.
(...)
Em sua decisão judicial, plenamente fundamentada, a d. autoridade impetrada aduziu:
‘Em casos semelhantes que tramitam por este Juízo o SERAY -Serviço de Atendimento a Famílias em situação de Violência sugere seja tomado o depoimento das crianças de forma a minimizar os danos decorrentes da'oitiva icpetitiva destas nas diversas fases investigatórias e processuais. O setor especializado deste Tribunal tem entendimento reiterado no sentido de que a 'revitimizaçào de crianças e adolescentes intimadas a depor em processos judiciais que investigam denúncias de abuso sexual consistem em fazer com que a vítima reviva, por meio da fala e da lembrança dos fatos, o trauma ocorrido. Tal fato pode ser caracterizado como um dano psíquico. Cada vez que a vítima é colocada numa situação em que precisa relatar novamente o que lhe aconteceu, corre-se o risco de suscitar um quadro típico de situações traumáticas, com efeitos adversos na área emocional, social e comportamental.
Nesse âmbito, a modalidade de tomada de Entrevista Cognitiva por videoconferência de crianças c adolescentes, como realizado no TJDFT, tem se mostrado efetiva c salutar, tanto para o resguardo destas, minimizando-se. ou afastando-se a produção de danos secundários, quanto ao completo esclarecimento dos fatos.
Assim, presentes os requisitos de relevância e urgência, contidos no inciso I do artigo 156 do CPP. A relevância está na palavra da vítima para o esclarecimento de suspeitas de eventuais crimes sexuais, que quase em sua totalidade, são cometidos em situação de deliberada ocultação pelos agentes.
A urgência está presente na própria condição da criança ou adolescente e, como bem colocado no requerimento do Ministério Público, especialmente do efeito devastador de abusos sexuais, caso comprovada a ocorrência, no desenvolvimento e no aparato psíquico da vítima.
Isto posto, para evitar maiores danos, decorrentes tia 'revitimizaçào' da adolescente, bem como porque com a coleta do relato, feita em data não distante a da comunicação dos acontecimentos, tem-se a possibilidade de facilitação do resgate na memória dos fatos e de seus contexto e circunstâncias, ACOLHO o pedido do Ministério Público [...]'
O Depoimento sem Dano (DSD) ora combatido pela impetrante, é medida já disseminada não só no Distrito Federal como em alguns estados, onde já se formou jurisprudência sobre o tema, nomeadamente no Rio Grande do Sul, unidade federativa sempre pioneira, ao lado do DF, em boas práticas judiciais.
O amparo legal da medida, além do já apontado artigo 156, I, do CPP, é o Estatuto da Criança e do Adolescente, cujos artigos Iº e 3º já enfatizam o dever de aplicação do Princípio da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente às situações em que se vislumbra a possibilidade de algum dano, físico ou psíquico, a essa categoria de pessoas. Outrossim, o artigo 4º do ECA positiva o Princípio da Absoluta Prioridade à Infância e à Adolescência, preceito que se harmoniza integralmente com o artigo 227 da Constituição da República[4], que define o dever do Estado, ao lado da família e da sociedade, de assegurar a efetiva e prioritária proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Previu, também, o ECA, em seu art. 98, várias medidas de proteção à criança e ao adolescente, aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos a elas forem ameaçados ou violados ‘I. por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II. Por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III. Em razão de sua conduta'.
(...)
É sabido que a previsão dos direitos humanos, fundamentais, no corpo de uma Constituição, reforça o compromisso do Estado para a sua proteção, cabendo ao intérprete e aplicador da norma extrair-lhe a máxima efetividade, de modo que a atuação do Poder Público como um todo ‘deve ser no sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstos, com mecanismos coercitivos para tanto, uma vez que a Constituição Federal não se satisfaz com o simples reconhecimento abstrato´[5].
Sensível ao comando constitucional, o Conselho Nacional de Justiça aprovou recomendação para que os tribunais do país implementem método especial para a coleta de depoimentos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes, em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado e sistema de gravação de áudio e vídeo das declarações.
(...)
Ora, é bom ficar claro que a produção antecipada de prova - nomeadamente a tomada de depoimento de uma criança supostamente vítima de abuso sexual - não se distingue, quanto ao seu resultado final, da prova que venha a ser, posteriormente, colhida durante a instrução criminal. Ambas são produzidas na presença das partes, sob as rédeas do contraditório e da igualdade entre as partes, tudo supervisionado pela autoridade judiciária competente, e tendo como objetivo não necessariamente a condenação ou a absolvição do réu, mas a descoberta da verdade, sob o devido processo legal.
Há, demais disso, um aspecto de extrema relevância para os interesses do paciente, do qual a impetrante não se deu conta. É que, em situações de violência sexual, não se pode excluir a possibilidade de interferências externas no depoimento da criança, quer por seus familiares mais próximos, quer por pessoas nem sempre suficientemente treinadas para o trato de assunto tão delicado.
Não se exclui, até, a possibilidade de ocorrência, em casos de abuso sexual, de situação em que a mãe ou o pai da criança a utiliza como instrumento de manipulação de sentimentos, até mesmo como meio para causar dano à imagem do cônjuge. Não há o menor indício de que tal situação se amolde ao caso concreto, mas apenas se mostra imperioso destacar que o depoimento prestado pouco tempo após o relatado abuso sexual minimiza os riscos de interferências externas no depoimento da criança.
Vejam, a propósito, Senhores Desembargadores, que o Conselho Nacional de Justiça, na já aludida Resolução n° 33, de 2010, em um dos considereanda, manifesta a preocupação de ‘viabilizar a produção de provas testemunhais de maior confiabilidade e qualidade nas ações penais, bem como de identificar os casos de síndrome da alienação parental e outras questões de complexa apuração nos processos inerentes à dinâmica familiar, especialmente no âmbito forense'.
Isso importa em perceber que, ao contrário do que sustenta a impetrante, a produção antecipada de prova, por meio de Depoimento sem Dano, a par de minimizar os efeitos deletérios decorrentes da experiência revivida pela criança ao narrar o abuso sexual - vale lembrar que a infante é geralmente sujeita a sucessivos depoimentos na Polícia, no Conselho Tutelar, no Setor de Atendimento Psicossocial etc - permite já identificar, com maior acuidade e segurança, a existência de traços de eventual manipulação da criança por terceiros, o que, se confirmado, resulta em benefício do investigado, que se verá livre da acusação formal do Ministério Público.
(...)
A vista de todo o exposto, é possível concluir que:
1. A produção antecipada de prova considerada urgente é autorizada expressamente pelo Código de Processo Penal, cujos artigos 156, I e, por interpretação extensiva, também pelo artigo 225 [CPP];
2. Ao Ministério Público, exclusivo titular da ação penal pública, máxime em crimes de natureza hedionda, cometidos contra criança ou adolescente, deve ser assegurado o direito de produzir prova antes mesmo do oferecimento da denúncia, como decorrência do próprio ius actionis, quer para dar lastro (ou não) à persecução penal, quanto para, se for o caso, obviar os efeitos deletérios do tempo sobre a prova oral;
3. O depoimento de criança ou de adolescente vítima de crime contra sua dignidade e sua liberdade sexual é de notória singularidade, haja vista que o (a) depoente encontra-se em fase de desenvolvimento físico e, principalmente, psíquico, de modo a caracterizar a urgência de seu depoimento, a permitir que supere, o quanto antes, o trauma causado pela violência sofrida;
4. Evidencia-se também a proporcionalidade da medida, sob os três aspectos que compõem tal princípio (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), haja vista as peculiaridades inerentes à condição da vítima, objeto de proteção prioritária do Estado contra todo tipo de violência, sobretudo a sexual, em conformidade com o que determina o artigo 227 da Constituição da República, bem assim os artigos Io, 3o e 4o do ECA;
5. O depoimento sem danos, para cuja realização convergem profissionais tecnicamente capacitados para ouvir o relato da criança ou adolescente, não viola qualquer das garantias defensivas, visto que prestado na presença do juiz e das partes, com possibilidade de exercício de contraditório e de ampla defesa, com registro fiel do depoimento, em gravação de áudio e/ou vídeo;
6. Não há, outrossim, direcionamento da prova antecipadamente colhida, visto que seu resultado é imprevisível, podendo até mesmo servir em benefício da defesa, quando se constata, nai dinâmica do depoimento, a falta de verossimilhança da notitia criminis, o que, em tal hipótese, resulta no abortamento oportuno da persecução penal, por falta de justa causa."
Em sintonia com o douto parecer ministerial suso transcrito está o entendimento deste eg. Tribunal de Justiça que prevê, inclusive, a tramitação prioritária de processos judiciais que se destinam à apuração de crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes, nos termos do provimento 3, de 10 de junho de 2011 que, no seu art. 4º dispõe:
Art. 4º A prioridade de tramitação consiste na autuação, prolação de despachos, decisões ou sentenças, designação de audiências, expedição de documentos necessários ao cumprimento da ordem judicial, tais como mandados, cartas precatórias, intimações, bem como no encaminhamento dos autos à apreciação do juiz de direito competente e na remessa dos autos ao Ministério Público ou à Defensoria Pública, em caráter prioritário sobre os demais processos judiciais que não gozem do benefício ora estabelecido." (grifo nosso).
Ora, por qualquer ângulo que se analise a insurreição da impetrante, força é concluir que o ato judicial atacado encontra amparo constitucional/legal, sendo certo, ademais, que restaram observados os direitos e garantias constitucionalamente estabelecidos não somente em favor da criança e do adolescente, mas também aqueles outros destinados aos acusados em processo criminal.
Isto posto, e pedindo venia para adotar como razões de decidir o que consta do douto perecer da Procuradoria de Justiça transcrito em linhas volvidas, denego a ordem.
E é como voto.
O Senhor Desembargador Mario Machado (Vogal) - Com o Relator.
O Senhor Desembargador George Lopes Leite (Vogal) - Com o Relator.
D E C I S Ã O
Denegar a ordem. Unânime.
[4] «Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.» («jovem» incluído pela Emenda Constitucional 65, de 13 de julho de 2010)
[5] ALEXANDRE DE MORAES. DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS. 3a ed. SP: Atlas.2000, p. 41.