Pesquisa inédita no Brasil, realizada por integrantes do Ministério Público, revelou o perfil das vítimas, estratégias dos criminosos e desafios na Justiça e na elaboração de políticas públicas no enfrentamento a esse tipo de crime
O estelionato sentimental cresce como uma forma silenciosa de violência patrimonial contra mulheres, especialmente em contextos das relações afetivas. Uma pesquisa inédita no Brasil, realizada por integrantes do Ministério Público, e publicada nesta quinta-feira, 19 de dezembro, analisou 39 casos registrados no Distrito Federal, entre 2019 e 2020, e revelou não apenas as principais características desses golpes, mas também as dificuldades enfrentadas pelas vítimas para obter justiça.
De acordo com os autores do estudo “O Golpe de Don Juan: análise da fenomenologia e das respostas da justiça ao estelionato sentimental”, o promotor de justiça Thiago Pierobom, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), e o assessor jurídico Gabriel Santana, da Procuradoria-Geral da República (PGR), a pesquisa teve o objetivo de compreender a fenomenologia dos casos de estelionato praticado por parceiro íntimo ou familiar e as respostas oferecidas pelo sistema de justiça, à luz da criminologia feminista, de forma a melhor orientar políticas públicas para responder a esse fenômeno.
O estudo aponta o perfil predominante das vítimas: mulheres brancas (53,8%), entre 25 e 44 anos (65%), residentes em bairros de classe média-alta (61,9%) e com renda acima de três salários mínimos (59%). O valor dos golpes soma a quantia de R$2,7 milhões. “O perfil é substancialmente distinto dos casos de violência doméstica física grave, majoritariamente contra mulheres negras de classe baixa”, aponta a pesquisa.
Do total das vítimas, 25,6% eram aposentadas ou empresárias. Profissionais da saúde, como enfermeiras, psicólogas, biólogas, fonoaudiólogas e médicas veterinárias, representam 23% dos casos, um percentual que, de acordo com a pesquisa, sugere um fator emocional ligado ao desgaste durante a pandemia, “ensejando maior vulnerabilidade a golpes praticados no âmbito das relações afetivas”.
Os casos analisados na pesquisa ocorreram em 19 localidades do Distrito Federal. Taguatinga, Ceilândia, Plano Piloto e Vicente Pires foram as regiões que concentram as maiores incidências, seguido de Águas Claras, São Sebastião e Lago Norte.
Ambiente
Também conhecidos como“estelionato afetivo”, “estelionato amoroso”, “estelionato por parceiro íntimo”, “golpe do amor” ou “golpe de Don Juan”, os crimes amorosos pela internet ganharam destaque em documentários recentes como "O Golpista do Tinder". Porém, o estudo revela que apenas 5,1% dos crimes ocorreram integralmente online (romance scamming). Do total dos casos analisados, 20,5% das fraudes começaram na internet e depois migraram para o ambiente físico. Além disso, a pesquisa mostrou que 30,8% dos ofensores já tinham outros registros policiais. Em 35,9% dos casos a relação era de até seis meses.
O estudo verificou três gêneros de golpes: gerência abusiva do patrimônio, quando o parceiro assume o controle financeiro da vítima, com 66,7% dos casos; indução à entrega de bens, promessas falsas que convencem a vítima a entregar dinheiro ou objetos, com 48,7%; e falsificações, como o uso indevido de assinaturas em documentos, que somaram 23,1% das ocorrências.
Os criminosos, em sua maioria, abusam da confiança e exploram a dependência afetiva para obter vantagens financeiras. As estratégias mais utilizadas foram o abuso da relação afetiva, a falsa identidade, a simulação de emergência, a exigência de cuidado, falsa oportunidade e até intimidação. Para cativar as vítimas, também se utilizam de frases como “te amo demais”, “vamos viver juntos para sempre”, “amor, confia em mim”, “precisamos disso para termos uma vida juntos”, “você é a mulher da minha vida”. Em um dos casos analisados, o criminoso causou um prejuízo de R$792 mil à vítima.
Justiça
Apesar da gravidade dos golpes, o estudo sugere que a violência patrimonial segue um caminho de invisibilidade nas instâncias formais de controle. Dos 39 casos estudados, apenas 23% resultaram em denúncia, e 10,3% chegaram à condenação, com pena média de 1 ano e 6 meses. Em 53,8% dos casos analisados, a investigação foi concluída em até dois anos.
Além disso, em 66,7% das ocorrências a mulher solicitou medidas protetivas de urgência, que foram concedidas em apenas 33,3% dos casos. A proteção patrimonial — essencial nesse tipo de crime — foi garantida em apenas 7,7%. “Apesar de claramente haver um abuso sobre as relações de gênero para o estelionato sentimental, em 23,1% dos casos, houve afastamento da aplicação do sistema protetivo da Lei Maria da Penha”, mostra o estudo. “Há uma dificuldade de reconhecer que o estelionato sentimental também é uma forma de violência baseada em gênero”, afirmam os autores.
A pesquisa mostra, ainda, que em nenhum caso houve requerimento de prisão preventiva do ofensor e que a insuficiência de provas foi o principal argumento de arquivamento das investigações, observado em 87,5% dos registros. “Em geral, são casos em que a atuação policial se prolongou por mais tempo em comparação aos demais em que houve acusação pelo Ministério Público”, afirma o documento.
Uma das razões apontadas para explicar a quantidade de arquivamentos nos casos está no próprio Código Penal brasileiro, que “expressamente afirma, em seu art. 181, que não se pune a violência patrimonial praticada pelo cônjuge, ascendente ou descendente, se não houver violência física ou grave ameaça, apesar de diretrizes de direito internacional sinalizarem para a necessidade de efetiva responsabilização dessa forma de violência”.
Para os autores da pesquisa, o sistema de justiça brasileiro precisa incorporar a perspectiva de gênero nas investigações e nos julgamentos, além de diminuir o tempo de intervenção. Além disso, sugerem a melhoria das investigações, com o uso de recursos como quebra de sigilos bancários e telemáticos; o fortalecimento de políticas públicas que ofereçam proteção patrimonial e suporte psicológico às vítimas desse tipo de golpe.
O estudo reforça, ainda, que o estelionato sentimental, embora reconhecido como crime de estelionato pelo Código Penal, ainda carece de mecanismos específicos de proteção. Atualmente, tramita no Senado o Projeto de Lei nº 2254/2022, que busca criminalizar esse tipo de conduta com penas mais severas.
O que fazer
A violência patrimonial é fruto de relações históricas de poder que atribuem ao homem a função de provedor e gestor patrimonial e à mulher a de cuidadora da casa, submissa à autoridade masculina. Com a evolução das relações sociais, a migração dos relacionamentos para a esfera digital e a maior independência financeira feminina, passaram a surgir novas formas de violência patrimonial contra as mulheres que possuem recursos financeiros.
Caso a mulher perceba que foi vítima de estelionato amoroso, ela deve registrar boletim de ocorrência e, se necessário, solicitar medidas protetivas. Também deve alterar senhas de e-mails, contas bancárias, cartões e qualquer outra informação que tenha sido compartilhada com o golpista.
As vítimas também devem resguardar todas as possíveis provas, como mensagens, ligações telefônicas, recibos, procurações e transações bancárias. Essas informações são importantes para demonstrar que a relação afetiva existiu e que houve abuso de confiança por parte do golpista.
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