Muitas pessoas possuem a falsa impressão de que o Brasil seria um “paraíso racial”, no qual a miscigenação asseguraria uma convivência pacífica e igualitária entre as pessoas pertencentes aos diversos fenótipos raciais. Esta visão iniciou-se a partir da obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, de 1933 (FREYRE, 2007), e até a década de 1990 pouco se alterou.
Durante a década de 1990, os primeiros estudos passaram a indicar a relação direta entre desigualdade social e etnia/raça (ver por todos HASENBALG e SILVA, 1992). Passa-se a reconhecer que a sociedade brasileira possui um preconceito velado, expresso em “piadas” e “brincadeiras” que escondem a verdadeira face do “racismo à brasileira” (TELLES, 2003). Ordinariamente as pessoas não se reconhecem como racistas, apesar de concordarem que a sociedade brasileira é racista (OLIVERA, BARRETO, 2003). Isso significa uma postura hipócrita de vários cidadãos de não reconhecer suas próprias práticas racistas como tais e, portanto, contribuírem para a perpetuação de uma cultura que normaliza as desigualdades étnico-raciais.
O racismo é uma grave violação de direitos humanos, por atentar contra o mais básico de todos os direitos: o de ser tratado com igualdade. O direito a não ser tratado de forma discriminatória está previsto em praticamente todos os tratados internacionais de direitos humanos e é o fundamento essencial das democracias (DUDH, art. 7º; CADH, art. 1.1 e 24; PIDCP, art. 2.1). A síntese dessa preocupação internacional está cristalizada na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1965 e ratificada pelo Brasil em 1968. Por esse diploma, o Brasil se compromete não apenas a não praticar institucionalmente a discriminação, mas também a coibir toda forma de discriminação social e a tomar uma postura ativa na alteração das relações sociais pautadas pela discriminação étnico-racial.
Nessa linha, a Constituição Federal prevê que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV) e sua política internacional é marcada pelo repúdio ao racismo (art. 4º, VIII). Há ainda um mandado de criminalização do racismo (art. 5º, XLII), qualificado pela inafiançabilidade, imprescritibilidade e pena de reclusão. Essa criminalização está prevista nos diversos tipos penais da Lei n. 7.716/2989, e complementada pelo crime de injúria discriminatória (CP, art. 140, § 3º).
Uma postura ativa dos órgãos do Sistema de Justiça na punição ao racismo é essencial para reforçar a vigência das normas de combate à discriminação racial (sobre a prevenção geral positiva de integração, ver genericamente: HASSEMER, 2005, p. 421-429), sem se descurar de preocupação mais ampla de abertura da Justiça Criminal para as experiências multidisciplinares de responsabilização ressocializadora (ÁVILA, 2010).
Nesse sentido, o projeto Oxalá consiste num conjunto de ações articuladas pelo Núcleo de Enfrentamento à Discriminação, em parceria com diversas outras instituições, com a finalidade de enfrentar o racismo e a discriminação racial no Distrito Federal. O projeto trabalha em três linhas de enfrentamento ao racismo, com as respectivas ações:
Prevenção
a) campanhas educativas institucionais;
b) divulgação na mídia dos casos de racismo;
c) fortalecimento dos canais institucionais de informação e denúncia
Atenção à vítima
a) parceria com a Defensoria Púbica do DF, para encaminhamentos ao acompanhamento jurídico e psicossocial das vítimas;
b) parceria com o núcleo de prática forense do IESB, para encaminhamentos ao acompanhamento jurídico e psicossocial das vítimas;
Intervenção criminal efetiva e ressocializadora
a) articulação com a PCDF para a criação de uma Coordenadoria de proteção a grupos vulneráveis, especializada no enfrentamento ao racismo;
b) atuação especializada do NED/MPDFT nas ações penais de racismo e injúria racial (acompanhamento das investigações e promoção de ações penais);
c) parceria com professores da Universidade de Brasília e da Escola de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação para ministrar curso de conscientização sobre igualdade racial aos réus de processos de racismo e injúria racial.
Destaca-se que o curso de conscientização sobre igualdade racial é oferecido como condição para a suspensão do processo nos casos de racismo ou injúria racial e tem como objetivo geral, mediato, a minimização do fluxo processual de forma efetiva e consciente, com redução a médio prazo da incidência criminal em mesmos crimes e, a longo prazo, da quantidade de processos de racismo e injúria racial pela efetividade da conscientização social. Os objetivos específicos, imediatos, do curso são apresentar o contexto histórico que gerou o mosaico étnico e racial que hoje configura a sociedade brasileira; evidenciar as consequências desses dados históricos para a situação social do negro no Brasil atualmente; abordar o contexto legal relacionado à discriminação e ao racismo; analisar como o discurso, a ideologia e o poder das classes hegemônicas silenciam ou escamoteiam as práticas racistas.
No que toca o conteúdo programático e o cronograma de atividades, o curso é ministrado em 8 horas, divididas em dois turnos de quatro horas cada. Os temas abordados são:
a) Conceitos básicos: racismo, discriminação, preconceito, minoria, estereótipo, etnia, raça, hegemonia, poder, poder simbólico, inclusão e exclusão;
b) Contexto histórico: chegada do negro ao Brasil; interação negro escravo e branco; libertação (sem amparo);
c) Contexto legal: racismo contravenção (Lei 1390, de 3 de Julho de 1951 – inclui entre as contravenções penais e prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor);
d) Contexto ideológico e discursivo: análise de práticas sociais e discursivas preconceituosas e racistas, que, reiteradas, sugerem que devem ser aceitas porque são normais e, por fim, análises de casos.