José Eduardo Sabo Paes
Promotor de Justiça da 2ª Promotoria de Justiça de Fundações e Entidades de Interesse Social do Distrito Federal, mestre em Direito e doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Complutense de Madri
O Estatuto peça primordial para uma fundação. Modificações estatutárias. Normas materialmente estatutárias. Momentos da concretização das alterações. Antes e depois do seu registro em Cartório. Requisitos para que se proceda à alteração.
1. Definição de estatuto O estatuto de uma fundação é peça de primordial importância para a entidade. Primeiro, porque através dele são estabelecidas as normas gerais e específicas pelas quais reger-se-ão as atividades da fundação. Segundo, porque é com o registro da norma estatutária em cartório que a fundação adquire personalidade jurídica. Pontes de Miranda (1) salienta que na estrutura jurídica da fundação falta a pluralidade de pessoas que está por baixo da personalidade jurídica nas sociedades. As pessoas que aparecem nas fundações são membros da administração, tal como ocorreria a qualquer administração de negócios alheios. A fundação tem a sua personalidade, distinta da personalidade dos seus administradores. A sociedade também a tem, distinta da personalidade dos seus sócios; porém, no caso da fundação, nem sequer se pode ter a ilusão de que a aliança de pessoas encha, na realidade, a personalidade jurídica. A organização, acima dos administradores, personifica-se. Daí a relevância do processo organizatório das fundações, que é "engendrante", em vez de ser "resultante", como nas sociedades. Um dos elementos mais ressaltantes, pela condição da economia individualística, é a vinculação do patrimônio ao fim. O estatuto é a norma fundamental e norteadora da organização e do funcionamento da fundação. Seus preceitos apresentam a rigidez e a flexibilidade necessária para resguardar a Instituição, seus fins e patrimônio, da ação do tempo e da vontade de seus órgãos de administração e são, muitas vezes, complementados por normas específicas de funcionamento constantes de um regimento interno. O novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa define o estatuto do latim statutu, "estatuído", como "lei orgânica de um Estado, sociedade ou associação e tem como constituição, ordenação, regra e regulamento". É grande a participação do instituidor, ou das pessoas por ele indicadas, tanto na elaboração do estatuto, vez que estará nesta norma a sua vontade consagrada - mormente nas finalidades da fundação, como em outros tantos dispositivos que possam expressar o gosto e a vontade do fundador no estabelecimento de regras lícitas que entender convenientes. Essa liberdade condiciona-se, é claro, à lei e a aprovação do órgão do Ministério Público, que é partícipe essencial no acompanhamento da redação do estatuto e inclusive, em alguns casos (art. 1.202 do CPC), é o próprio elaborador do estatuto. Esse condicionamento está presente na elaboração, na aprovação e nas alterações ou reformas que sobrevierem ao estatuto (art. 1.201, caput e 1.203, ambos do CPC).
2. Noções iniciais sobre as modificações estatutárias Já foi dito que Estatuto é norma essencial e perene para a entidade. Todavia, circunstâncias posteriores à instituição da entidade e apenas constatadas no decorrer do seu funcionamento podem fazer com que seja absolutamente necessária a reforma ou alteração de dispositivos do estatuto, tendo sempre como último escopo a preservação do patrimônio, o aperfeiçoamento e a mantença das finalidades da fundação. Em princípio, entende-se por reforma ou alteração estatutária qualquer modificação do seu texto original. Todavia, essas alterações têm distintas gradações e algumas delas, por sua menor significância, podem até não ser admitidas como modificações das regras estatutárias; outras, justamente por afetar extremos, que se estimam essenciais no estatuto (como, por exemplo, as finalidades), nos levam a suspeitar de que, mais do que uma simples reforma estatutária, trata-se de uma verdadeira alteração na natureza da própria fundação e conseqüente desvirtuamento da vontade dos instituidores, caso em que se torna impossível a concretização da modificação desejada. As alterações podem também ter lugar na fase de elaboração e aprovação do estatuto pelo órgão do Ministério Público, oportunidade em que deverão ser analisadas em conformidade com o tempo em que se operarem.
3. Momento de sua concretização
3.1. Antes do registro no Cartório de Pessoas Jurídicas Há obrigatoriamente, e por força de lei, uma fase de aprovação do estatuto pelo órgão do Ministério Público (art. 27 do CC). Nesta fase normalmente são feitas várias modificações estatutárias, fruto de um entendimento havido entre os instituidores e o Curador de Fundações visando tornar o estatuto capaz de propiciar o pleno e legal funcionamento da fundação. Nesta fase são feitas, apresentadas e discutidas minutas de estatuto com o órgão do Ministério Público responsável por sua aprovação, oportunidade em que poder-se-á adequar convenientemente o estatuto à vontade do instituidor, ao patrimônio por ele doado e às finalidades a ele afetadas, enfim, à escritura pública de instituição que, como se sabe, precederá, no tempo, ao registro do estatuto. Será viável, portanto, qualquer alteração que não conflite com a escritura pública de instituição. É possível, inclusive, que decida o Promotor de Justiça/Curador de Fundações negar aprovação ao estatuto da forma como apresentado, cabendo, então, aos instituidores alterar os dispositivos estatutários para que se proceda a aprovação, devendo, para tanto, apresentar justificativas que propiciem uma nova manifestação do órgão do Ministério Público, tudo a fim de propiciar o seu ulterior registro Cartório de Pessoas Jurídicas (2)
3.2. Após o Registro do Estatuto no Cartório de Pessoas Jurídicas O estatuto sendo aprovado pelo órgão do Ministério Público através de ato próprio, e registrado no Cartório de Pessoas Jurídicas traz, como conseqüência, a constituição da fundação com sua personificação, passando a pessoa jurídica fundacional a ter vida própria regida pelo estatuto aprovado e registrado. Assim, qualquer reforma do estatuto deverá, dali por diante, obedecer às regras próprias estabelecidas naquela norma. Essas regras não devem se afastar dos postulados expressos no Código Civil (artigos 28 e 29), que servem de balizamento quanto à forma, ao conteúdo e quanto ao procedimento de qualquer modificação que seja realizada no estatuto após ter sido ele registrado. Estes pressupostos a serem atendidos encontram-se no primeiro daqueles dispositivos e estão assim colocados: "para se alterarem os estatutos da fundação é mister:
I - que a reforma seja deliberada pela maioria absoluta dos administradores ‘competentes para gerir e representar a fundação';
II - que não contrarie o fim desta; e
III - que seja aprovada pela autoridade competente, isto é, pelo Ministério Público, cuja denegação pode ser suprida judicialmente (art. 27, parágrafo único, e arts. 1.201 e 1.203 do CPC); e também no art. 29, garantidor dos direitos da minoria vencida , que pode promover judicialmente a nulidade da reforma, resguardados os interesses de terceiros."
4. Conteúdo das modificações do estatuto Ao fazermos as considerações iniciais, nos referimos à "gradações" das reformas ou alterações estatutárias. Agora, as explicaremos: existem dispositivos estatutários como, por exemplo, aquele que trata da sede da Fundação, haja vista que alguns instituidores colocam, inadvertidamente e de forma expressa o endereço, a localização da sede da fundação com número de rua, prédio, sala e não somente a cidade em que se situa. Este tema embora contido no corpo do estatuto não é materialmente um tema estatutário mas sim, apenas formalmente, mesmo porque sequer haveria obrigatoriedade de que constasse a localização da sede no estatuto com tal precisão. Caso conste da norma estatutária qualquer mudança de local (vez que muitas vezes a sede da fundação é alugada ou dada objeto de comodato) causará uma inconveniente alteração de estatuto. Dessa forma, resulta evidente que a modificação de simples dados no texto estatutário, como o domicílio, no exemplo acima colocado, não pode ser considerada rigorosamente como uma modificação de estatuto, pois consta daquele instrumento apenas formalmente, já que foi nele desnecessariamente colocado. Todavia, existem modificações estatutárias que afetam a essência ou a substância da própria fundação. Nestes casos, recomenda-se um exame detido e muita cautela. É o caso, por exemplo, de modificações dos fins da fundação para outros totalmente distintos ou até opostos. É o caso, também, daquelas modificações estatutárias, que a pretexto de alterar alguns dispositivos na organização administrativa da entidade, destinam-se a desvirtuar, enfraquecer ou a prejudicar a própria organização enquanto instrumento para a gestão e para a consecução das finalidades fundacionais atingindo, muitas vezes, a própria idéia de administração estabelecida pelos instituidores da fundação. Em qualquer caso, como adverte Caffarena, "o tema da modificação da fundação é um tema de grande transcendência para a vida da fundação". Ademais, utilizando as palavras de Lopez-Nieto (3): "Não se trata aqui, como ocorre nas associações, de estabelecer uma nova regra que convenha aos sócios, senão que se trata de fazer viável o funcionamento de fundação e muitas vezes de evitar seu desaparecimento. Em outras palavras, fazer possível o cumprimento dos fins de interesse geral, que pode exigir-se adaptações e atualizações, e o respeito à vontade do fundador". Marcello Caetano (4), em suas lições, apresentou uma divisão doutrinária das modificações, dizendo elas respeito: ao caráter jurídico, à orgânica, à autonomia e ao fim. Divisão esta que pela sua importância, e claridade, apresento-a: "A modificação no carácter jurídico duma fundação produz-se, como nota Ferrara, quando uma instituição privada passa a instituto público, quando uma fundação eclesiástica passa a ter carácter laico, quando um instituto estrangeiro passa a nacional, ou vice-versa, ou ainda se de instituto de utilidade geral se converte em de utilidade local, ou vice-versa. Passemos às modificações da composição orgânica. Essas são as mais fáceis: consistem em alterações dos estatutos destinadas a modificar o número, a competência ou a composição dos órgãos da fundação, processos de recrutamento e de renovação dos respectivos titulares e outras da mesma índole. Seguem-se as alterações estatutárias que "afectem a autonomia das fundações, quer por lhes imporem deveres de aceitar a coordenação com outros institutos de fins iguais ou análogos, quer para lhes permitir a integração em federações ou uniões de institutos, às quais estes terão de confiar parte da sua competência a fim de que os órgãos federais possam realizar uma obra colectiva mais ampla e profunda." E temos ainda as modificações do fim da fundação. "Essas modificações, para assim poderem ser qualificadas, não hão-de, porém, implicar alteração ou mudança do objectivo visado pelo fundador: mas apenas uma ampliação ou restrição deste, quanto à matéria ou relativamente ao lugar". 5. Pressupostos ou requisitos da modificação estatutária O Código Civil, nos artigos 28 e 29, apresenta requisitos ou pressupostos para a reforma do estatuto de uma fundação. A primeira, contida no inciso I do art. 28, é que as alterações desejadas sejam fruto da deliberação da maioria absoluta dos competentes para gerir e representar a fundação. Portanto, uma reforma estatutária deverá ser apreciada e aprovada pelos Conselho Curador e Administrativo, em reunião conjunta para a qual todos os seus integrantes devem ser regularmente convocados. Na ata dessa reunião deverá ser consignado, obrigatoriamente, o nome de todos os integrantes dos dois órgãos, registrando-se sua ausência ou presença; como também deverá ser consignada a redação aprovada de cada artigo, parágrafo ou inciso alterado, bem como o quórum das decisões, se por maioria ou unanimidade. Tal precisão no texto da ata faz-se cabível face à necessidade de se identificar os integrantes dos Conselhos que divergiram da maioria e aos quais a lei confere o pleno direito, de vencidos na modificação do estatuto, promoverem junto ao Juízo competente a nulidade da decisão (art. 29 do CC). Haverá, por certo, a possibilidade de que a minoria vencida interponha, preliminarmente, pedido administrativo diretamente ao órgão do Ministério Público a fim de que este não aprove as alterações levadas a efeito pelos gestores e dirigentes da fundação, caso esteja comprovado que as alterações pretendidas contrariam os fins da fundação, dilapidam o seu patrimônio, subvertem a sua estrutura jurídico-administrativa, ou sejam nocivas à sua própria existência. A lei estabeleceu no inciso II do art. 28, como segundo requisito ou pressuposto para modificação do estatuto, que não poderá a alteração contrariar o fim da fundação. Creio que este requisito é de fundamental importância, vez que em hipótese alguma será permitido que uma fundação possa, por circunstâncias várias, desvirtuar ou substituir suas originárias finalidades por outras que o tempo ou a vontade de administradores assim o desejarem. Por fim, o inciso III do art. 28, estabelece que a reforma do estatuto seja aprovada pela autoridade competente e atribui direta e indelegavelmente ao órgão do Ministério Público competente pelo velamento da fundação (art. 26 do CC) o poder-dever de analisar e aprovar em ato fundamentado o estatuto que lhe for submetido. Notas (1) Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, Parte Geral, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1954, p. 426.) (2) Há evidentemente o recurso ao Poder Judiciário, na forma de ação de suprimento com base no art. 1.201, § 1º, do CPC (3) Caffarena é citado por F. Lopez-Nieto y Mallo em seu Manual de Fundaciones, Editorial Bayer Hnor S.A., Barcelona, 1996. (4) Marcello Caetano, Das Fundações e Subsídios para a interpretação e reforma da legislação portuguesa, Edições Ática, 1961, Portugal, fls. 139 a 141.